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Mostrando postagens de setembro, 2020

Sobre amor e violões

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Pela terceira vez, ele havia se matriculado no curso de violão da paróquia local. Não que tivesse ouvido musical ou que seus dedos curtos permitissem malabarismos nos trastos do instrumento, tampouco porque aspirava ser o centro das atenções nas rodas adolescentes dedilhando alguma música do Renato Russo. Todas estas aspirações haviam sucumbido ante a lógica do "não dou para a coisa", mas desta vez, havia uma motivação que suplantava gostos e necessidade de autoafirmação: Suzy estava matriculada na nova turma. Helton e Suzy eram vizinhos de rua, mas apesar da inevitável percepção mútua, havia um constrangimento pueril que impedia que levassem os entreolhares velados à algum tipo de interação, nem que fosse um singelo cumprimento. Nos amenos finais de tarde daquela primavera, por muitas vezes esses flertes ocorriam. Suzy, sempre indefectível com seus cabelos longos e soltos sobre suas camisetas de bandas de rock, dissimulando olhares nem sempre cândidos a Helton, sempre desvia...

Inumanidade inata

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Após horas perambulando, tendo como rumo o tanto-faz intencional, esparramou-se na calçada, sob a primeira marquise que encontrou. Às suas costas, uma vitrine expunha aos transeuntes coloridas vestes, calçados, chapéus e acessórios, numa quase psicodelia em contraste ao monocórdio tom de cinza-amarronzado dos andrajos do andarilho, cuja humanidade lhe era negada por cada par de olhos que chispavam desprezo pela absoluta miséria que vivenciava. Não que o desprezo das pessoas lhe incomodasse; preferia a execração que a invisibilidade, até porque não era quem o ignorava que lhe lançava moedas vez ou outra. Lançou ao largo um olhar de prescruta, buscando no arrabalde um papelão que nivelasse as ranhuras do mosaico da calçada às feridas de seu dorso, ou algum cano minando água que lhe aplacasse a sempiterna sede, ou quem sabe, um resto de marmita intocado aos seus rivais, as moscas, os ratos e os cães vadios. Em vez disso, ali, do outro lado da rua, percebeu um brutamonte trespassando o cós...

Flores florem

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Havia transcorrido um dia desde o solstício da primavera, esta que por sua vez, iniciara-se há dois dias. Talvez o frescor da estação tivesse motivado que aquele cumprimento cotidiano viesse acompanhado de um olhar compartilhado e um afago nos cabelos de sua até então amiga, causando em si um arrepio retribuído por um suspiro. A partir dali, os esbarrões de ombros tornaram-se abraços, os olhares trocados iniciavam cúmplices conversas, os cafés evoluíram a almoços, as despedidas em encontros, as esparsas lembranças do outro em tórridos compromissos de alcova. E na nova realidade que desfrutavam, afagos, arrepios, almoços, encontros e compromissos de alcova subverteram a outrora rotina em uma história que apenas aguardava começar para dar a entender que sempre existira. Então pelos vindouros anos, assim como a chuva cairia, o sol amornaria, e o frio enregelaria, nas primaveras do porvir, para os cúmplices do mútuo sentimento, as flores floresceriam e jamais seriam esquecidas de seu desab...