Inumanidade inata

Após horas perambulando, tendo como rumo o tanto-faz intencional, esparramou-se na calçada, sob a primeira marquise que encontrou.
Às suas costas, uma vitrine expunha aos transeuntes coloridas vestes, calçados, chapéus e acessórios, numa quase psicodelia em contraste ao monocórdio tom de cinza-amarronzado dos andrajos do andarilho, cuja humanidade lhe era negada por cada par de olhos que chispavam desprezo pela absoluta miséria que vivenciava.
Não que o desprezo das pessoas lhe incomodasse; preferia a execração que a invisibilidade, até porque não era quem o ignorava que lhe lançava moedas vez ou outra.
Lançou ao largo um olhar de prescruta, buscando no arrabalde um papelão que nivelasse as ranhuras do mosaico da calçada às feridas de seu dorso, ou algum cano minando água que lhe aplacasse a sempiterna sede, ou quem sabe, um resto de marmita intocado aos seus rivais, as moscas, os ratos e os cães vadios.
Em vez disso, ali, do outro lado da rua, percebeu um brutamonte trespassando o cós de uma senhora, deixando sobrever de relance, uma faca, que encostada nas costas da idosa, era apelo irresistível à submissão.
Enquanto o larápio discretamente examinava bolsos e bolsas da senhora, sem denotar alarde aos passantes, o mendigo pôs-se ereto e trôpego, rumou ao flanco do bandido, puxando-o para si e libertando a idosa do opressivo assédio.
Enquanto a vítima se afastava ofegante, conferindo seus pertences, sem olhar para trás, o assaltante, ato contínuo, desferiu um golpe da faca que segurava, contra o abdômen do mendigo e logo em seguida, misturou-se à fauna urbana, de forma tão dissimulada quanto foi a abordagem à esquálida e indefesa senhora.
Ali não havia marquise para que o agora herói se prostrasse novamente, apenas o meio-fio a amparar seu decúbito.
E assim como sempre fôra, os transeuntes ainda lhe chispavam olhares de desprezo, desta vez amenizados pelo torpor definitivo ocasionado pelo sangue que escoava pelo bueiro, levando aos esgotos os derradeiros estertores de sua vida miserável.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Flora humana

Emoções Químicas

Pra tudo acabar na quarta-feira