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Mostrando postagens de outubro, 2021

Campo-santo

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Uma silhueta encapuzada surgiu de relance, vinda do arvoredo. Seu vestido púrpura, de longas bainhas de renda negra, escondia os pés que o conduziam, farfalhando ao roçar as folhas secas, dando a impressão que a aparição de tons ígneos flutuava pela noite de pleno luar. A ambiência do sepulcrário, invadido pela batalha, compunha-se do som de espadas percutindo carne, ossos e metais, tochas flamejando e  imprecações que sucediam lamentos de agonia, que foram cessando à medida em que o assombro crescia, catalisado pela visão da rubra silhueta. Como que zumbificados, invasores e moradores largaram suas armas e caminharam, trôpegos e ofegantes, em direção ao espectro escarlate. As carcaças mutiladas, prostradas e besuntadas em sangue, mesmo despidas do élan vital, arrastavam-se atrás dos vivos, preenchendo a atmosfera com ulos fantasmagóricos e nauseabundo odor de morte. Aos poucos, mortos e vivos circundaram a aparição, formando um cerco estático, como um assédio ao vulto carmesim. Um...

Fome

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Após pagar a passagem no guichê, seus bolsos ficaram tão vazios quanto o bucho que roncava. E a volta e meia no relógio que faltava para seu embarque era promessa de um martírio famélico portentoso, até que pudesse recostar na poltrona do busão e dormir por todo percurso para não se lembrar do vácuo no abdômen, onde havia mais costelas que gordura. A fome fazia com que a cabeça não funcionasse direito. Tinha momentos de ausência, onde pensamentos esdrúxulos escanteavam a razão e a percepção da realidade. Num desses arroubos de insensatez,  imaginava-se um modelo fotográfico ou manequim de desfile trajado com o fino da moda, circundado de ávidos olhares femininos, cheiroso e limpo, no limiar de fartar-se de acepipes num desses restaurantes de luxo, que só sabia da existência por ter folheado uma revista de fofocas enquanto se aliviava numa das privadas nauseabundas da rodoviária. O delírio foi abruptamente dissipado por mais um agonizante rugido de suas aéreas entranhas. Decidiu and...

Café e Cevada

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Em uma manhã de segunda-feira, na padaria de sempre, os colegas se encontram antes de iniciar o batente. _Passe o açúcar. De amarga basta a vida, quanto mais café. _Ficou louco? Você é diabético.  _E essa cerveja aí, às sete da manhã? Também mata e é amarga como café sem açúcar. _Amigo, não sou mais casado justamente porque não gosto que deem pitaco nos meus gostos. E olha que minha ex-mulher tinha xana. Você, nem isso. _Coleguinha, você que me encheu o raio do saco quando te pedi o açúcar. Está explicado porque a gostosa da sua ex-mulher te trocou pelo ascensorista. Você é chato demais. _Bicho, perder mulher pra ascensorista pouco me afeta. Triste seria perdê-la para um folgado que não presta nem para adoçar o café sozinho. _Você não precisa de mim para ser corno, brother. Basta arranjar uma mulher e esperar o dia seguinte para ela te trocar pelo primeiro cara que cruzasse o caminho, não por escolha, mas por necessidade. _Pode até ser, mas pelo menos eu não sou um inútil que preci...

De Profundis

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Enviezados seguem os passos descuidados A conduzir, trôpego, o timoneiro da esperança perdida Por mais que das tormentas advenha a bonança O fado vil, como carma, transmuta ouro em flandres Das promessas, agouros frustram a fortuna Tornando em óbolos as conquistas imerecidas Consumindo a essência, o âmago é o que resta Desnudando ao roto a alma em frangalhos Augúrios tardios da outrora quimera Lívida agora, conquanto esvanecida Até que o gozo seja apenas nostalgia.

Original Pecado

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Eu era Adão, despertando com o gosto de maçã na língua cansada das notívagas incursões naquele corpo ainda adormecido, prostrado no torpor do deleite. E a perdição, ainda  prostrada em lençóis, ressonava qual felina, desafiando sua face a expressar alguma sensação que não fosse sereno contentamento. A fresta na janela deixava perpassar um fio de luz, qual holofote, que à medida em que profanava o templo de minha volúpia, revelava convidativas nádegas, despudoradamente expostas pelo capricho de um cobertor amarfalhado. Os cabelos bagunçados, qual ráfia desfiada, acortinando com grandes rasgos aquela tez acetinada, que circundava carnudos e carminados lábios, entreabertos, quase num convite involuntário à luxúria. Seus olhos se entreabriram, confrontando meu olhar, para então me brindar com uma piscadela. Despiu seu semissorriso onírico, mordiscando o lábio inferior, num desafio explícito à minha libido, ao qual servilmente retribuí com uma ereção. E num átimo de consciência, ao cede...

Depressão pós-coito

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Findo o êxtase, as impressões. E o silêncio ofegante era o abecedário que continha mágoas suplantadas pelo êxtase que ainda teimava em subsistir, ignorando a letargia que se apossava dos corpos por si consumidos num embate mútuo a favor de ambos. O script era o mesmo de sempre: idas plenas de autoestima inflada pela ocitocina e hiatos de presença pelas impossibilidades sociais compartilhadas, seguidas por reencontros famintos, onde o imponderável era escravo do inexorável. Como todo ciclo, em seus meandros, as particularidades do relacionamento, se é que assim pode ser descrito, descreviam parábolas, paralelas e tangentes, envolvendo terceiros, aspirações não contempladas, ligações não atendidas, ciúmes contidos, porres terapêuticos e promessas de ruptura jamais levadas a termo. E assim passaram-se anos. Décadas... E mais uma vez prostrados entre braços e pernas entrelaçados, nos lençóis maculados de secreções, refletidos no teto por um espelho inquisidor, a reflexão era a mesma: Tudo ...