Fome
Após pagar a passagem no guichê, seus bolsos ficaram tão vazios quanto o bucho que roncava.
E a volta e meia no relógio que faltava para seu embarque era promessa de um martírio famélico portentoso, até que pudesse recostar na poltrona do busão e dormir por todo percurso para não se lembrar do vácuo no abdômen, onde havia mais costelas que gordura.
A fome fazia com que a cabeça não funcionasse direito.
Tinha momentos de ausência, onde pensamentos esdrúxulos escanteavam a razão e a percepção da realidade.
Num desses arroubos de insensatez, imaginava-se um modelo fotográfico ou manequim de desfile trajado com o fino da moda, circundado de ávidos olhares femininos, cheiroso e limpo, no limiar de fartar-se de acepipes num desses restaurantes de luxo, que só sabia da existência por ter folheado uma revista de fofocas enquanto se aliviava numa das privadas nauseabundas da rodoviária.
O delírio foi abruptamente dissipado por mais um agonizante rugido de suas aéreas entranhas.
Decidiu andar um pouco para ver se o tempo passava mais rápido e logo no terceiro passo, vislumbrou uma família se levantando de uma mesa da lanchonete ao lado, deixando além de lixo, uma porção semiconsumida de batatas fritas, um sanduíche intacto, senão por uma mordiscada de criança e algumas latas de refrigerante, cujo volume restante era incerto.
Dessa vez, o ruído estomacal foi um lamento, com uma consequente e abundante salivação, digna dos cachorros de Pavlov.
Entre os despojos na mesa e si, uns poucos metros de nada se interpunham.
Pensou se seria crime ocupar o espaço deixado pela família e dar cabo ao que ela não havia conseguido consumir, mas não tinha certeza se aquilo era um crime e cadeia era um lugar que ele conhecia, mas dá qual não tinha nenhuma saudade.
Algum psicólogo ou sociólogo que observasse a cena faria conjecturas, talvez apostas, sobre qual fator moveria aquele maltrapilho viajante em direção à escolha: fome ou medo?
No desespero da fome e no medo de ser preso, o indivíduo começou a se deslocar de maneira estranha. Seus passos sucediam-se erraticamente, pé direito em direção à lanchonete e esquerdo no rumo da plataforma.
E num dado momento a barriga vazia, a descoordenação de movimentos e a confusão mental deram cabo da consciência daquele homem, fazendo com que caísse e desfalecesse, após bater a cabeça em uma cadeira.
Acordou sentado defronte uma mesa da lanchonete, acudido por dois funcionários que lhe perguntavam se estava bem e se estava sentindo alguma dor.
Após a resposta, os benfeitores saíram e retornaram em alguns minutos com um sanduíche e um copo de suco, prontamente devorados pelo passageiro esfomeado.
Enquanto isso, os funcionários se lembravam da resposta que tiveram quando perguntaram sobre a dor do infeliz.
A resposta tinha sido:
A fome, moço.
A fome está doendo.
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