Eu, invisível
Acordei invisível.
Não descobri de imediato, pois a escuridão que salvaguardara meu sono fazia com que tudo no quarto também parecesse invisível.
Dei-me conta da minha invisibilidade somente ao olhar o espelho, enquanto abria a gaveta do gabinete para pegar a escova de dentes.
Surpreendi-me mais com a naturalidade com que me descobri invisível do que com a estranha imagem de um pijama ereto e vazio no reflexo e enquanto me divertia em ver a escova e a espuma do dentifrício flutuando em obediência à escovação, comecei a avaliar as possibilidades oferecidas por existir e não ser visto.
Decidi abdicar das roupas para perambular incólume por aí e uma estranha sensação de liberdade e culpa passou a me acometer a partir do momento em que abri a porta e saí para a rua.
O estranhamento à minha condição era alimentado por uma desorientação incômoda, pois não vislumbrava meus pés, mãos, nada que em mim auxiliasse a evitar que enquanto andasse, pisasse em falso ou esbarrase nos anteparos do caminho e nestes percalços, constatava que ser invisível não me protegia da dor.
Perambulei por praças, bisbilhotei conversas, me banhei no chafariz, subi na torre da igreja, cochilei sobre os arcos da ponte, esmerei-me em ser pueril na exata medida em que não era percebido por ninguém.
Decidi voltar para casa, pois apesar de invisível, não era inexistente para as demais pessoas e certamente algumas delas já deveriam estar preocupadas com minha ausência.
Enquanto caminhava de volta para casa, parei diante de uma pessoa caída, inconsciente, na calçada.
Ali, de passagem, não dava para supor se era um bêbado fortuito, um pedinte adormecido ou alguma vítima de mau súbito, portanto avaliei como seria possível fazer algo por aquele semelhante, levando em conta que eu poderia ensejar ao socorrido a percepção que estaria sendo arrebatado aos céus ou atormentado por algum tipo de alma penada.
Ao léu do lapso, uma senhorinha apressada, com o olhar no infinito e expressão de fleuma, passou sobre a pessoa caída de um passo apenas, com tamanha desenvoltura, que era como se nada houvesse sob seus pés, só sendo detida em seu caminho pelo vigoroso encontrão que deu neste inconveniente homem invisível.
Num átimo estávamos os três esborrachados na calçada: a pessoa caída, a senhorinha apressada e a criatura invisível...
Antes que eu pudesse me levantar e pudesse ajudar qualquer dos outros dois companheiros de infortúnio, a lépida daminha já havia se posto em pé e seguido seu rumo, não sem antes lançar um faiscante olhar de raiva sobre o pobre homem desmaiado, certamente aludindo a ele a culpa pelo encontrão que a derrubou.
Tratei de tirar o cidadão caído para uma mureta num recuo do passeio, onde estaria mais seguro, tranquilizando-me que não era mais do que a vítima de um porre, pelo bodum característico que quase me sufocou.
Chegando em casa, constatei que minha teoria sobre algum tipo de alarde que minha ausência pudesse ter causado a alguém era ilusão, pois ninguém estava em casa e não havia nenhum recado afixado na geladeira.
Voltei a me deitar na cama, resolvi tirar um cochilo e enquanto pensava no bebum caído e na senhorinha apressada, cheguei à triste conclusão que a verdadeira invisibilidade é aquela que é gerada pela falta de empatia, a frieza dos corações e a ausência de solidariedade das pessoas, que tornaram aquela pessoa no chão mais invisível aos seus semelhantes do que eu, em minha transitória condição.
Não sei quanto tempo dormi, mas me tranquilizei em dessa vez, olhar para minhas mãos iluminadas por uma fresta de sol da janela e constatar que elas estavam ali, tão visíveis quanto sempre fui em toda minha vida que precedera este episódio, que talvez tivesse sido um sonho.
Disposto a encarar finalmente a realidade visível, estranhei que estivesse nu e ao calçar os chinelos, com os pés sujos.
E enquanto me levantava, um pensamento assombrou a minha mente:
"Tomara que eu não seja sonâmbulo..."
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