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Mostrando postagens de setembro, 2022

Alteio

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Num ímpeto determinado, ousou sair da barraca, enquanto os primeiros lampejos da aurora iluminavam o dourado esmaecido da vegetação da cordilheira. Ainda que os alísios gélidos da montanhas teimassem em enregelar seu corpo combalido pela noite insone, prostrado sobre o chão forrado de jornais e mantas de seu iglu artificial, a paisagem que se descortinava era um estímulo e tanto para reacender o fogareiro e requentar o atro líquido que amornaria suas entranhas e despejaria em seu sangue a preciosa cafeína. Aos poucos, o hálito solar dissipava a espessa neblina, desafiando a quão longe os olhos poderiam divisar. À frente, o abismo rochoso transmutava muito abaixo em densas florestas, que se espalhavam densamente por léguas, para então entregar o espaço a pastos, vilas e fazendas.  Mais além, uma extensa represa e no horizonte oposto, outra cordilheira, encimada por nuvens que lhe encobriam os cumes. Um errante cachorro do mato o observava de longe, com as orelhas eretas, confuso ent...

A mata sombria

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A lua cheia precedeu o descerrar do véu noturno, expondo os contrastes do claro-escuro da mata do Córrego da Farinha, que ladeava a estrada de terra. E dentro da surrada camionete que praticamente se arrastava pelo saibro, estalando e fumegando, Faustino, o assustado motorista, maldizia a hora em que aceitara levar as compras do mês para o sitiante que residia no sopé do Morro do Bode Preto. Em circunstâncias normais, às dezenove horas da sexta-feira o motorista encerraria a labuta e iniciaria o gozo de seu descanso de fim de semana, mas como dizer não ao patrão que aturava seus atrasos e eventuais ausências sem demiti-lo, mesmo com a gaveta repleta de currículos? O apreensivo Faustino fixava a visão no foco do farol, evitando olhar para os lados, pois além dos perfis fantasmagóricos que a tênue claridade da lua formava ao penetrar os vãos entre as árvores, a mata trazia o agouro de ser o local de suicídios e desaparecimentos de pessoas, conforme histórias passadas entre gerações e ain...

Êxtase dionisíaco

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O último trago dele coincidiu com o derrame da última gota de vinho na taça dela. Baco já os tinha acolhido, abençoado e agora esconjurado, tal volúpia etílica compartilhada pelos consortes  naquela sacal noite de terça-feira. Ao esgotar o assunto, assim como o combustível engarrafado de seus absurdos, os olhares atravessaram a mesa de plástico branco, chispando convites entre as pálpebras pesadas de um e outra. Em impulsos mútuos se puseram em pé com o apoio da mesa, depois da parede e por fim, do abraço que os esperava com sofreguidão. Como muletas compartilhadas, os corpos rumaram, trôpegos e unidos, para o cubículo que os aguardava com finalidade de alcova. E assim, entre esbarrões na mobília e topadas com as quinas do interminável corredor, deixaram-se prostrar no catre do cubículo, amontoados como fardos jogados ao acaso. A ébria se prostrou de costas, com a saia caprichosamente levantada até o pescoço, deixando vislumbrar um hirsuto caminho de vênus, que como rombuda seta, r...

Divagações sobre fugas

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Às vezes tendemos a imaginar um fugitivo sob o prisma da impropriedade ética, moral ou legal, alguém que pelo infortúnio da causa injusta, tem que dar cabo à sua visibilidade em prol de uma incerteza geográfica que lhe salve pescoço, honra ou até culhões, de um merecido castigo. Mas... E quando a tal "fuga" é de nada, nem ninguém, ou no máximo, de si? Se nada temos a nos ameaçar, de quem ou do que fugimos? Pode não ser propriamente uma fuga.  Pode ser simplesmente o atendimento a um anseio de privacidade, o cansaço ante o jugo do senso comum, a negação de se anular em virtude do premente alheio em detrimento das próprias preferências ou até o direito do exercício da oportunidade de estar na melhor companhia possível, mesmo que esta seja a própria. Divago sobre isso na vivência do que explicito.  Num ambiente onde o caos visual dá lugar à predominância do verde da natureza, o rumor de carros e ruídos urbanos é sobrepujado por murmúrios silvestres, o ribombar da água sobre as p...