A mata sombria
A lua cheia precedeu o descerrar do véu noturno, expondo os contrastes do claro-escuro da mata do Córrego da Farinha, que ladeava a estrada de terra.
E dentro da surrada camionete que praticamente se arrastava pelo saibro, estalando e fumegando, Faustino, o assustado motorista, maldizia a hora em que aceitara levar as compras do mês para o sitiante que residia no sopé do Morro do Bode Preto.
Em circunstâncias normais, às dezenove horas da sexta-feira o motorista encerraria a labuta e iniciaria o gozo de seu descanso de fim de semana, mas como dizer não ao patrão que aturava seus atrasos e eventuais ausências sem demiti-lo, mesmo com a gaveta repleta de currículos?
O apreensivo Faustino fixava a visão no foco do farol, evitando olhar para os lados, pois além dos perfis fantasmagóricos que a tênue claridade da lua formava ao penetrar os vãos entre as árvores, a mata trazia o agouro de ser o local de suicídios e desaparecimentos de pessoas, conforme histórias passadas entre gerações e ainda alimentadas por um ou outro caso que persistia em ocorrer ainda nos dias atuais.
A sucata ambulante chacoalhava e rangia, dando a impressão que em breve precisaria de um guincho para conseguir proceder com a entrega da encomenda.
Faustino era um rapagão avantajado, de presença física intimidadora, que porém, se desfazia todas as vezes que proferia alguma palavra com uma voz insegura e infantilizada, que à primeira impressão, soava como um convite ao riso, não importando o assunto. E se não bastasse este atributo que lhe conferiu a singela alcunha de "Fala-Fina", ainda padecia de uma personalidade assustadiça e supersticiosa.
Não fazia muito tempo que Faustino dera vexame no seu círculo de amizades. Numa dessas noites de folga, cozidos de pinga, Faustino e seus amigos resolveram pôr à prova sua coragem e sortearam entre si quem seria o intrépido paladino que pularia o muro do cemitério, percorreria a via mortuária e acenderia uma vela aos pés da Santa Cruz como prova de uma valentia besta, própria de machos imberbes.
À parte a honestidade do sorteio, lá estava Faustino, trôpego e trêmulo, com isqueiro, vela e crucifixo, pé ante pé, no rumo de executar o feito digno do herói brejeiro que pretendia se mostrar.
Contra todos os prognósticos, Faustino chegou à Santa Cruz sob o olhar distante de seus amigos da onça e quando se abaixou para deixar a vela de chama bruxuleante ao solo, um espectro furtivo encarapitou em suas costas, fazendo com que emitisse um urro aterrorizante e percorresse o caminho de volta em desabalada carreira, carregando no lombo a criatura que o atacou, pulando o muro com desenvoltura própria dos desesperados.
Ao abrigo da luz dos postes da rua, Faustino desfaleceu, prostrado ao chão com o encosto encarapitado, certo de que ali dera seu último suspiro.
Minutos depois, Faustino abriu os olhos e a visão de vários rostos gargalhando, olhando para si, a princípio o fez imaginar que o céu fosse uma confraria de marmanjos zombeteiros, mas ao recobrar o raciocínio, percebeu que fora vítima de um engodo zombeteiro e que a criatura das trevas que carregou no lombo percorrendo o cemitério era apenas um de seus amigos que lhe pregara a troça.
Reza a lenda que ali surgiu o apelido Fala-Fina, pois a partir desse susto, nunca mais sua voz foi a mesma.
Findos os devaneios de Faustino, seu maior temor se concretizou: ao mesmo tempo em que a camionete sofreu uma pane, ficando atravessada no caminho, um féretro medonho de vultos envoltos em lençóis brancos dos pés à cabeça iluminado com tochas e deixando entrever um caixão preto, surgiu caminhando em passos lentos na estrada, ao encontro do motorista, que petrificado pelo medo, não conseguia esboçar reação.
O cortejo se deteve em frente ao veículo, abrindo caminho a uma criatura nua, hirsuta, avermelhada, com feições humanas, chifres de cervo e patas de porco, apoiada num cajado de madeira trifurcado, que rumou direto ao caixão.
Os vultos brancos abriram o ataúde preto, que se encontrava vazio, ao mesmo tempo em que a criatura encarou Faustino e fez um gesto com as mãos, chamando-o para si.
A visão foi aterradora demais para que Faustino suportasse e pela segunda vez em sua vida, ele veio a perder os sentidos.
Sábado, pela manhã, o telefone tocou na mercearia e assim que o dono atendeu, ouviu o dono do sítio reclamar que a compra do dia anterior não havia sido entregue.
Intrigado, o merceeiro se pôs a coletar os mantimentos para ele próprio fazer a entrega, enquanto maldizia Faustino, prometendo para si que segunda-feira ele seria demitido.
Ao passar pelo Córrego da Farinha, no percurso para o Sítio do Morro do Bode, encontrou a camionete atravessada na estrada, com as compras na carroceria, mas nenhum sinal de Faustino.
Até hoje não se sabe o destino ou o paradeiro do folclórico Fala-Fina, mas sua desventura agora é apenas mais uma das histórias que são contadas sobre a sombria mata do Córrego da Farinha.
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