Postagens

Mostrando postagens de agosto, 2023

En passant

Imagem
Era início de noite de um fim de mês de agosto fustigado pelo alísio hálito de uma atmosfera taciturna, que concedia ao clima a primazia de enregelar minhas orelhas, numa conveniente distração ao acachapante sentimento de marasmo que insistia em me acompanhar todas as vezes em que eu subia a ladeira da viela do subúrbio, após outra segunda-feira de labuta. O sereno bailava errante, fazendo-se de prisma quando revelado pelo vapor de mercúrio das luminárias que ladeavam a escadaria, permitindo um lapso contemplativo enquanto eu contava mais uma vez os degraus, um por um, no rumo do refúgio que me acolheria na característica modorra do subúrbio. Encostados na parede, junto à folha dupla de flandres rebitada que fazia as vezes de porta de entrada da minha morada, lá estavam de novo os adolescentes da periferia, imberbes, belos, irresponsáveis, autoconfiantes na medida do acinte, mas que se postos sob o jugo do futuro imponderável, emanavam a fragilidade daqueles que se permitem sorrir enqu...

Presságio (Haicai 3)

Imagem
Vi augúrios Auspícios vindouros Findar agouros

Rubro remorso

Imagem
Otávio tinha tudo o que queria na vida.  Era rico, popular, relativamente jovem, saudável, bem apessoado, tinha uma bela esposa chamada Serena, e dois filhos maravilhosos.  Mas a Otávio, a bonança era insuficiente para preencher seu vazio existencial e volta e meia, pensamentos libertinos lhe assaltavam a mente. E nessas horas, geralmente quando se privava dos afazeres e ficava sozinho em claustrofóbicos diálogos internos, urdia tramas em que subvertia sua imagem ilibada de cidadão exemplar e dava vazão, ainda que em devaneios, a uma faceta desordeira, lasciva e dissimulada de sua natureza. Com o passar do tempo, foi desenvolvendo uma súbita fixação por conteúdos violentos dos noticiários da mídia e por obras literárias de temática sombria, das quais as de Edgar Allan Poe, Aleister Crowley e H. P. Lovecraft eram as mais recorrentemente visitadas. Dos devaneios às referências e das sombras de seu espírito há muito reprimidas, uma tragédia pessoal se precipitou como hecatombe so...

Parnaso

Imagem
Sob o manto frio da indiferente fleuma, O castigo vagueia e a morte conspira, Na penumbra dos dias, minha sina prevalece, Esvaindo o alento nas areias da ampulheta O fado desdito a mim relegado De engodos gozosos se fez vereda, Ao poeta insano que vagueia ao léu  Das escarpas abissais de uma alma perdida. Nas veias lateja a volúpia excruciante, De rostos e corpos que singram meu ser, E em rotos versos, maldito me retrato, À cupidez dos algozes, meu banquete de fel. Bruxuleia a centelha, luz mortiça de meu ser Alumiando com sombras minha essência Detentora da solitude na prescruta de abrigo, Na sublime culpa da paixão levada a termo A cálida razão, qual fera acorrentada, Meus desatinos recrimina, qual brida me cerceia E de júbilo e lágrimas num embate desigual Minha sina transcende, de augúrio a epitáfio. Ah, destino! Indiferente algoz Deste tolo bardo de coração maltrapilho  A consequência é aguilhão que me trespassa o peito, Para que a dor me acalente com seus braços de impos...

Ébrio fortuito

Imagem
  Eu estava na fila do banco, esperando para pagar um boleto vencido, com os míseros trocados que ainda julgava ter na conta. Era uma segunda-feira cinzenta, minha boca estava seca e a cabeça explodindo em uma enxaqueca daquelas. Na minha frente, uma matrona mal-humorada reclamava de tudo. Atrás de mim, um sujeito de terno e gravata, com uma bíblia a tiracolo, bradava ao celular sem parar, como se estivesse num púlpito. Eu suava em bicas, só pensava em pagar minha dívida e sair dali o mais rápido possível. Quando finalmente chegou minha vez, fui até o caixa e entreguei meu cartão e o boleto. O cara olhou para mim com cara de nojo, digitou alguma coisa no computador, depois me devolveu o cartão e disse, num irritante tom monocórdio: _Desculpe, senhor, mas o seu saldo é insuficiente. _Como assim? - perguntei, entre incrédulo e cínico. _O senhor tem apenas dois reais e quarenta e três centavos na conta. _Isso é impossível! Tinha pelo menos cem reais ontem! _Talvez o senhor tenha feito...