Rubro remorso

Otávio tinha tudo o que queria na vida. 
Era rico, popular, relativamente jovem, saudável, bem apessoado, tinha uma bela esposa chamada Serena, e dois filhos maravilhosos. 
Mas a Otávio, a bonança era insuficiente para preencher seu vazio existencial e volta e meia, pensamentos libertinos lhe assaltavam a mente. E nessas horas, geralmente quando se privava dos afazeres e ficava sozinho em claustrofóbicos diálogos internos, urdia tramas em que subvertia sua imagem ilibada de cidadão exemplar e dava vazão, ainda que em devaneios, a uma faceta desordeira, lasciva e dissimulada de sua natureza.
Com o passar do tempo, foi desenvolvendo uma súbita fixação por conteúdos violentos dos noticiários da mídia e por obras literárias de temática sombria, das quais as de Edgar Allan Poe, Aleister Crowley e H. P. Lovecraft eram as mais recorrentemente visitadas.
Dos devaneios às referências e das sombras de seu espírito há muito reprimidas, uma tragédia pessoal se precipitou como hecatombe sobre a rotina burguesa de Otávio: a visita do advogado de sua esposa comunicando a intenção do divórcio, divisão igualitária dos bens e guarda de ambos os filhos, pois eram ainda de tenra idade e muito dependentes dos cuidados maternos. Ainda segundo o causídico, havia o pedido da agora ex-esposa para que se Otávio não mais interagisse pessoalmente com ela e quaisquer assuntos que fossem pertinentes ao ex-casal, fossem tratados exclusivamente com o advogado. E de nada adiantaram os questionamentos quanto ao motivo dessa providência, pois a todos eles a resposta era a mesma: "Em juízo e ocasião propícia, as razões serão devidamente expostas." 
Era final de tarde e após a saída do advogado, a pesada porta de mogno percutiu no batente, tonitruando em eco pela enorme sala, dando ares de masmorra ao já solitário detentor da solitude como presente indesejado.
A angústia pelo abandono tornou-se desespero após o conteúdo de uma garrafa inteira de Cointreau descer queimando pela sua garganta, quase num único gole. E o desespero se fez ressentimento ao entornar quatro doses de aperol em sequência, fazendo o mundo girar em seu redor e impropérios contra a ex-esposa, o advogado e o mundo brotarem de sua boca balbuciante, em gritos ensandecidos.
Seu ideário secreto alimentado por criaturas sobrenaturais, crimes violentos e fetiches de submissão, aliado aos vapores etílicos e um ego narcísico ferido pelo abandono e uma pretensa traição moldou-se em um amálgama de sentimentos negativos, que alimentava em seu íntimo um ímpeto de vingança. Mas vingança contra quem? Contra a mãe de seus filhos? Não. Em sua mente perturbada ela já havia morrido a partir do momento em que o abandonou. Contra quem então? Contra si? De repente, ele mesmo era o culpado pela própria desgraça...
Talvez pelos fins de semana em que deixou Serena sozinha em casa com as crianças enquanto acampava com os amigos da empresa...
Ou pelas noites em claro enfileirando páginas de fetiches sexuais no computador enquanto sua família dormia... 
Ou então por esquecer datas importantes, como o aniversário dos filhos ou do casamento, se ausentando para programações sociais enquanto as velas sobre o bolo eram apagadas sem sua presença...
Ou até por pedir para um taxista pegar Serena e o segundo filho recém-nascido no hospital, enquanto comemorava distribuindo charutos aos amigos e enchendo a cara no happy hour...
Otávio teve uma epifania: ele mesmo era o culpado pela sua própria desgraça. E o culpado teria que pagar pelo que causou.
Foi até a garagem, pegou uma corrente e um estilete. Voltou à sala, cortou um dos pulsos, rabiscou com sangue uma frase na parede, posicionou a mesinha de canto sob o lustre, enroscou a corrente no caibro que o sustentava, com ela deu três voltas no pescoço, chutou a mesinha para longe e deixou seu corpo despencar para o abismo da não-existência.
O alvorecer com pesadas nuvens surgiu agourento para Serena, que girava a maçaneta da porta de entrada de casa para retornar, depois de uma noite na residência dos pais.
Num arroubo de desencanto pela afetividade negada por Otávio, decidira por dar-lhe um "susto", com a intenção de fazê-lo notar que necessitava de mais atenção para si e para os filhos e julgava que ter mandado o advogado com a proposta simulada de divórcio o faria repensar suas atitudes.
Assim que a porta se abriu, descortinou-se a horrenda cena de Otávio pendurado sem vida na corrente, com olhos esbugalhados, a língua grotescamente pendurada fora da boca, dando ao cadáver uma expressão fantasmasgórica de zombaria.
E antes que Serena emitisse o mais aflito e sofrido grito que culminou em sua queda desfalecida ao chão, ainda pôde ler as trágicas últimas palavras rabiscadas em sangue sob o retrato da família pendurado na parede:
"Me perdoe por tudo."

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Flora humana

Emoções Químicas

Pra tudo acabar na quarta-feira