En passant
Era início de noite de um fim de mês de agosto fustigado pelo alísio hálito de uma atmosfera taciturna, que concedia ao clima a primazia de enregelar minhas orelhas, numa conveniente distração ao acachapante sentimento de marasmo que insistia em me acompanhar todas as vezes em que eu subia a ladeira da viela do subúrbio, após outra segunda-feira de labuta.
O sereno bailava errante, fazendo-se de prisma quando revelado pelo vapor de mercúrio das luminárias que ladeavam a escadaria, permitindo um lapso contemplativo enquanto eu contava mais uma vez os degraus, um por um, no rumo do refúgio que me acolheria na característica modorra do subúrbio.
Encostados na parede, junto à folha dupla de flandres rebitada que fazia as vezes de porta de entrada da minha morada, lá estavam de novo os adolescentes da periferia, imberbes, belos, irresponsáveis, autoconfiantes na medida do acinte, mas que se postos sob o jugo do futuro imponderável, emanavam a fragilidade daqueles que se permitem sorrir enquanto não tivessem os sonhos sequestrados pela madureza.
No seio da quebrada, a diversidade suplantava os estereótipos e nesta fauna urbana cabiam artistas, sábios, tolos, religiosos fervorosos, viciados, trabalhadores, marginais, comerciantes, profissionais liberais, indigentes, gente promissora, pessoas massacradas pela vida difícil e também a mim, um professor tiozão tornado nômade pela necessidade imposta pela estrutura de um Estado que muito exige, mas pouco retribui.
_E aí, moçada? Não os vi na escola de novo. - Cumprimentei-os.
_Aí, tio... Lá não dá nós não. Tamo aí na correria e se a firma lucrar, já já viramos empresários. - Respondeu Mandrake, o mais velho deles.
_Garoto... Isso é furada. O gerente geral foi em cana ontem. E olhe onde vocês estão marcando touca: no meio da viela. Os canas fecham a entrada e a saída e vocês vão rodar, igual ele. - Alertei-os.
_Pega nada não, tio. Se a gente for em cana, é só mais uma tatoo pra exibir pras minas. Aqui é vida loka.
_Crie juízo, molecada! E subam uns degraus aí, senão vocês vão acabar me comprometendo. Se cair a ficha, vocês me procuram na escola. Daí a gente troca um papo reto sobre a vida, beleza? - Despedi-me.
_Pode deixar, tio. Você é parça. Bora deixar o tio descansar, galera! - Mandrake respondeu, enquanto todos me acenavam, subindo a viela.
A água quente do chuveiro não aplacou a apreensão que me acompanhou durante o banho, tampouco a janta requentada que consumi, nem o sono que venceu meu parco interesse pela programação da TV aberta. A partir daí, a preocupação pela vida dos meninos que vi crescer e que não fui capaz de ressignificar suas vidas tornou-se desalento, embalando mais uma noite solitária deste quixotesco idealista periférico.
E no outro dia, quando o alarme grasnou, lembrando que ainda havia um porquê para me pôr desperto, a motivação para vencer o torpor veio no compromisso de fazer com que o alvorecer de tantas pessoas que iriam cruzar minha vida fosse mais feliz que o ocaso da existência de quem há anos cultivava a esperança para os outros, ainda que não mais a houvesse para si.
Comentários
Postar um comentário