Postagens

Mostrando postagens de maio, 2022

Jardim do Tempo

Imagem
Jardim do tempo  Um tênue mormaço aquecia as costas do encimesmado ancião, enquanto este, com as mãos nuas, remexia substrato, terra e esterco nas raízes dos lírios no jardim. Um discreto olor de lavanda disputava os sentidos do velho com o zumbido das abelhas, que por sua vez, desenhavam ômegas invisíveis pelo arrabalde, numa labuta incessante e alheia à distante cacofonia do subúrbio. As memórias, companheiras fieis do idoso, sequestraram suas sinapses, transmutando emoções joviais em sentimentos difusos, quase lhe fugindo pelos olhos, pela impossibilidade de serem revividas. E por mais que o tempo futuro fosse cada vez menor frente ao passado que insistia em ser lembrado, uma persistente e intrigante sensação de incompletude lhe mantinha a tenacidade em persistir na existência. Gotas de suor se juntavam em filetes, prescrutando a larga testa, descendo aos lábios ressequidos, não sem antes misturar-se a tímidas lágrimas, precipitando ao solo,  brindando as flores com sal, ág...

Travessa Maturidade

Imagem
O sol luzia no firmamento, tanto quanto em seus rostos vincados pelas agruras da marcha inexorável do tempo. E os reflexos no granito do pavimento mostravam o caminho a seguir, sempre no rumo dos lampejos. O grisalho de seus cabelos prateavam a aragem que os revolviam, quais brilhos de estrelas que fulgiam em miríades. As mãos cansadas que seguravam o guidão, mais se apoiavam nele que o seguravam, mas eram suficientes para manter o equilíbrio do casal. As pernas e pés esquálidos, expostos por bermudas e chinelas, percorriam ciclos nos pedais e pedivelas, dando rumo à intenção de ambos, alheios às gentes, carros e casas que os ladeavam. Na garupa, os graciosos trejeitos de uma dama extasiada com o vento que acariciava sua tez cansada, contratavam com os puidos panos que a trajavam, trazendo em tons pasteis, um encanto próprio dos quadros de Degas. Quisera um pedregulho se interpor entre o caminho e o biciclo, furtando do casal o equilíbrio, lançando-os ao canteiro, onde um arbusto os ac...

Naufrágio

Imagem
Ele a fitava, olhando para o mar. _Quero ter-te de novo. Você me conhece e sabe do meu desejo - disse-lhe ela. _Você é perfeita demais para que alguém diga que te merece, ainda que quem diga seja você mesma. E isso não é ruim, apenas significa que você é mar revolto e sou uma jangada - ele respondeu. _Então imerja em mim; seja o naufrágio que acolherei nas profundezas do mar de lágrimas que minha saudade criou. _Ao risco dos vagalhões levarem os destroços do meu ser a praias que não sejam seus braços, para que a areia de seus litorais profanem o que nasceu para ser seu?  _O risco da perda daquilo que pode ser meu, vale um instante que seja de seu singrar em minha superfície ávida dos carinhos de sua proa. Capitaneia-me, meu marujo. E num mergulhar de cabeça, abandonando a frágil segurança da madeira sob seus pés, ele se atirou nos braços de sua sereia, qual tritão em volúpia, ressurreto em forma e essência, compartilhando sua verdadeira natureza com o par há muito desgarrado. E num...

Provação

Imagem
Na sala de espera, o som ambiente da TV sintonizada em um programa de culinária se misturava a gemidos, expectorações, espirros, choro de crianças, arrastar de chinelas, mexericos venais e o sinal sonoro que apitava sempre que os números das senhas mudavam no painel de led. Impressa num papel colado na parede de azulejos brancos, a efigie de uma enfermeira com o dedo indicador ereto sobre os lábios encimava a palavra "silêncio", que confrontada ao burburinho e à cacofonia do lugar, deixava dúvidas se estava advertindo os presentes ou zombando da situação. Alheio ao furdunço e esperançoso de que fosse chamado à consulta em menos tempo do que a hora e meia que havia se passado desde sua chegada, o dono da senha número dezenove perdia gradativamente ao pouco de serenidade que o fatalismo da demora o havia investido, fazendo-o suar em bicas, seguindo de tremores em suas mãos frias. Uma criança de uns três anos insistia em lhe puxar os cadarços e nem mesmo o olhar de desaprovação ...

Malleus Maleficarum

Imagem
Os raios de sol da manhã irromperam pelo quadrículo gradeado de sua única janela, iluminando sua tez alva e imunda, de uma paradoxal contradição entre beleza e descuido. Seus cabelos negros, longos e desgrenhados, emaranhados entre lêndeas e forragem, emolduravam sua face cadavérica, encimada em um corpo esquálido, coberto por uma esgarçada túnica branca e encardida, que mais expunha suas vergonhas do que as ocultava. Ao contrário dos desjejuns dos últimos seis meses, o que foi deixado num entreabrir e cerrar da grossa porta era análogo a um régio banquete e o porquê de tal deferência ela conseguia aos poucos discernir. Tornou sua atenção àquela nesga de luz solar que iluminava um céu de azul anilado, em contraste com a penumbra do cômodo infecto em que habitava e pôde ouvir um crescente crepitar enquanto o burburinho dos aldeões parecia denotar um frenesi próprio de grandes acontecimentos. Não tocou na comida, não por soberba ou fastio, mas tomada pela apatia de quem há muito desdenha...

Outonal labuta

Imagem
Era mais uma manhã de outono, com a óbvia pasmaceira que acometia os dias que se interpunham entre os equinócios. Despertar na mesma cama, para sorver o mesmo café de cada dia, ouvindo as mesmas pequenas tragédias do cotidiano sendo grasnadas por indivíduos engravatados confinados em telas de led, esforçando-se para dar ares de novidade ao tecido de obviedades cerzido pela rotina de absurdos que compõem a vida das formigas humanas, em nada representava algum tipo de motivação que lhe sequestrasse do enfado. Em poucos minutos teria de estar em um coletivo abarrotado de proletários oprimidos pela vida, esfregando-se uns aos outros, tossindo, espirrando, dormindo, tagarelando, cada qual cumprindo seu roteiro de engrenagens puídas, no aguardo de compartilharem ferrugem quando enfim, estivessem encaixadas e girando na gigantesca máquina de moer gente chamada labuta, onde os poucos momentos em que se sentiriam humanos eram quando estivessem comendo ou defecando entre um toque de sirene e out...