Malleus Maleficarum

Os raios de sol da manhã irromperam pelo quadrículo gradeado de sua única janela, iluminando sua tez alva e imunda, de uma paradoxal contradição entre beleza e descuido.
Seus cabelos negros, longos e desgrenhados, emaranhados entre lêndeas e forragem, emolduravam sua face cadavérica, encimada em um corpo esquálido, coberto por uma esgarçada túnica branca e encardida, que mais expunha suas vergonhas do que as ocultava.
Ao contrário dos desjejuns dos últimos seis meses, o que foi deixado num entreabrir e cerrar da grossa porta era análogo a um régio banquete e o porquê de tal deferência ela conseguia aos poucos discernir.
Tornou sua atenção àquela nesga de luz solar que iluminava um céu de azul anilado, em contraste com a penumbra do cômodo infecto em que habitava e pôde ouvir um crescente crepitar enquanto o burburinho dos aldeões parecia denotar um frenesi próprio de grandes acontecimentos.
Não tocou na comida, não por soberba ou fastio, mas tomada pela apatia de quem há muito desdenhava das próprias necessidades.
Suas divagações foram interrompidas pelo irromper de um imponente gendarme, de impecáveis trajes, cabelos ruivos cobertos por um capacete do qual se destacava elegante pluma em seu cimo, que segurou a donzela caída pelo cotovelo, num convite mudo a pôr-se de pé e acompanhá-lo pelo declive dos patamares da escadaria que eram o único caminho possível entre a masmorra e a praça abarrotada de gente.
Assim que se fizeram visíveis à turba, o feto que a infeliz abrigava no ventre fez-se notar em espasmos, como se a consciência da mãe o alertasse para o porvir que jamais lhe tornaria vida de fato.
O fogaréu deformava as feições das pessoas que gritavam atrás das chamas, dando-lhes a aparência de demônios vociferantes, ávidos por uma imolação que lhes aplacasse as frustrações de suas vidas miseráveis.
Os pés e mãos daquela que chamavam "bruxa" foram atados, enquanto o arcebispo bradava que se a piedade divina salvasse a condenada das chamas, seria perdoada e se viesse a morrer, estaria condenada ao inferno.
Era uma sentença justa por usar da influência diabólica para seduzir um piedoso sacerdote e dele vir a ser fecundada.
Com um brusco movimento do verdugo, a mulher, agora mártir, foi atirada ao plasma abençoado.
E naquela sexta-feira, do dia 13 de um mês de agosto, das chamas que imolavam a moribunda, pôde-se ouvir sua derradeira imprecação:
_Veremo-nos no inferno!

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