Provação

Na sala de espera, o som ambiente da TV sintonizada em um programa de culinária se misturava a gemidos, expectorações, espirros, choro de crianças, arrastar de chinelas, mexericos venais e o sinal sonoro que apitava sempre que os números das senhas mudavam no painel de led.
Impressa num papel colado na parede de azulejos brancos, a efigie de uma enfermeira com o dedo indicador ereto sobre os lábios encimava a palavra "silêncio", que confrontada ao burburinho e à cacofonia do lugar, deixava dúvidas se estava advertindo os presentes ou zombando da situação.
Alheio ao furdunço e esperançoso de que fosse chamado à consulta em menos tempo do que a hora e meia que havia se passado desde sua chegada, o dono da senha número dezenove perdia gradativamente ao pouco de serenidade que o fatalismo da demora o havia investido, fazendo-o suar em bicas, seguindo de tremores em suas mãos frias.
Uma criança de uns três anos insistia em lhe puxar os cadarços e nem mesmo o olhar de desaprovação lançado ao capeta em forma de guri conseguia fazer sua genitora parar de rir da situação, da criança ou sei lá, da cara do incomodado, vai saber?
Decidiu ignorar ambos, enquanto um zumbido insuportável lhe fustigava o ouvido de dentro para fora, consequência corriqueira das vezes em que ficava nervoso.
A criança agora se apoiava sob uma das pernas do coitado, fitando-o fixamente, com um sorriso puro e inocente, mas que àquele atormentado passageiro da agonia parecia um odioso escárnio, especialmente pela baba da criatura que encharcava sua calça na altura do joelho.
A mãe da criança babona já não ria mais. Gargalhava, e agora ele tinha certeza que era da sua cara.
Os números se sucediam no painel, e os avisos sonoros decorrentes soavam como uma sirene de polícia na cabeça do outrora sereno indivíduo, fazendo com que começasse a ficar tonto, ao mesmo tempo em que sua face adquiria uma palidez quase cadvérica.
Viu que a criança estava agora montada em sua perna, balouçando-se como um caubói texano, enquanto a mãe, em êxtase, batia palmas e arreganhava a bocarra desdentada, cantando "upa, upa, cavalinho!"
Tamanho frenesi foi demais para o buchinho da criança, que resolveu esvaziar seu conteúdo no colo de seu "cavalo", na forma e odor de bílis, leite azedo e farinha de milho.
A mãe já não se contentava em gargalhar. Estava agora em pé, guinchando como um rato moribundo, apontando para a dupla encharcada de vômito, quando de repente, virou os olhos, silenciou-se e prostrou-se ao chão, qual uma jaca que cai da árvore.
Enquanto o homem-cavalo tirava o bebê-caubói do colo e o colocava sentado na cadeira ao lado, vários funcionários trajando branco colocavam o corpo inerte da mulher em uma prancha e depois, em uma maca com rodas, tomando o rumo do interior do nosocômio.
A maca seguia pelo corredor e enquanto sumia de vez da vista do homem, sua passageira ainda mantinha o olhar nele, com uma espessa espuma escorrendo pelo canto da boca, mas ainda com um sorriso zombeteiro congelado à face, como se levasse para o além a histriônica alegria que sentira antes de seu coração parar de bater.
O homem se levantou no momento em que o número dezenove piscou no painel, ignorou a criança que agora chorava e tomou o rumo de casa, sujo, humilhado, nervoso, mas grato à providência divina por ter levado a mulher, em vez de si.

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