Quarenta e cinco segundos

O sol escaldante calcinava meu antebraço esquerdo, enquanto eu freava diante do semáforo em vermelho.
E essa cor primária parecia onipresente no meu estado de espírito belicoso, na lataria do meu carro, na brasa do cigarro, na pele do antebraço, na minha conta bancária, na minha gravata, na placa de parada obrigatória, nos meus olhos marejados, no sangue salpicado no asfalto pela carcaça de um cachorro atropelado...
Há tempos, levantar era um martírio, trabalhar era um fardo, relacionar-se socialmente era um convite à discórdia e o percurso entre meus afazeres, inoportunos momentos para infindáveis diálogos internos, nos quais peremptoriamente eu era vítima de mim por ser o algoz dos outros.
Imerso na contemplação de minhas desventuras, nem percebi quando um maltrapilho aproximou-se da janela e me propôs, quase impondo, um óbolo:
"Boa tarde, patrão! Dá um trocado para eu tomar uma pinga?"
O turbilhão de meus pensamentos haviam me deixado aéreo. Assim como um mendigo, bem poderia ter sido um assaltante, que em vez de me pedir trocados, poderia me levar carteira, carro, quiçá até a existência, esta dentre as quais, me parecia a de menor valor naquele momento.
Olhei para o console, onde havia uma nota de cinco e de forma quase automática, peguei-a e entreguei ao pedinte.
No percurso entre o console e a mão do pobre diabo, inferi se haveria mais dignidade em eu dar o dinheiro para que ele afundasse no vício ou eu lhe negasse e desse um conselho ou uma reprimenda.
Meu movimento foi mais rápido que o pensamento e antes que eu chegasse a uma conclusão, o dinheiro já estava na mão do andarilho.
Súbito, um sorriso quase banguela, numa face enrugada e curtida pelas intempéries, emoldurada por um cabelo grisalho e desgrenhado, repleto de caspas e fiapos de cobertor, abriu-se para mim e antes que eu dissesse algo, recebi um beijo no rosto, seguido de um sonoro "valeu, patrão", enquanto ele seguia o rumo das barracas dos camelôs, onde certamente saciaria seu vício, ou coisa pior.
Ao contrário do que a lógica poderia preconizar, não senti asco ou raiva pela profanação de minha face lívida e inexpressiva. Num átimo, lembrei que há dias esse beijo do pedinte havia sido o único contato físico com outro ser humano e também a exclusiva manifestação de apreço que havia recebido de alguém neste período.
O verde surgiu no semáforo, raptando-me das divagações, enquanto eu acelerava rumo ao zênite de outro episódio da minha rotina, não sem antes ponderar que cinco reais por aqueles quarenta e cinco segundos talvez tenham sido o melhor gasto que já fiz em toda minha vida.

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