Catarse episódica
A tarde do meio de semana com feriado prolongado era metodicamente desperdiçada com afazeres em série pelo proletariado, como se a expectativa pelas diversas perspectivas do ócio iminente contaminasse tudo com a pressa de terminar logo o que era feito sem o compromisso do esmero na execução, conquanto isso não acelerasse marcha dos ponteiros do relógio de ponto.
A atmosfera de uma efeméride nacional de cunho religioso que ocorreria em uma quinta-feira não poupava quaisquer vivalmas. Adeptos do credo em destaque programavam excursões ao centro de devoção na data da comemoração, organizando-se em grandes grupos ou em família, esmerando-se no planejamento, no qual obrigatoriamente constavam lanches, objetos de devoção e é claro, uma merreca para gastar com bugigangas no aflorado comércio que desde milênios exerce simbiose com a fé das multidões.
Peregrinos aos milhares arrastavam fatigadas carcaças por dezenas e até centenas de quilômetros, por dias e até semanas nas rodovias lindeiras, despertando comoção na população, que se mobilizava para fornecer água, comida, pouso e solidariedade a estes penitentes de causas tão particulares quanto ferrenhas. As trágicas manchetes dos noticiários relatando acidentes fatais devido à promíscua e pontual convivência entre multidões e veículos às margens dos leitos carroçáveis não arrefeciam a fé do populacho; diria até que a tornavam monolítica, visto o verniz que o perigo dá a atos de renúncia material em prol da homenagem ao sagrado.
Comitivas de cavaleiros também eram flagradas pelos acostamentos das estradas, paramentados quais cowboys tardios, expondo ao público e às intempéries sua determinação de fiéis orgulhosos, encarapitados em seus corcéis de díspares portes e linhagens, mas todos impecavelmente escovados e calçados.
Aos menos fervorosos e àqueles que não compartilhavam do ideário da data, restavam as veredas dos litorais e das zonas rurais, onde ancas, coxas, torsos e narizes se exporiam por quatro dias à fornalha radioativa do astro-rei, para deleite dos hoteleiros, donos de restaurantes e de quiosques, além dos vendedores de bebidas alcoólicas, filtros solares e cremes para queimaduras e assaduras, que davam graças às divindades pelos tórridos dias vindouros preconizados pela meteorologia.
A sirene da fábrica pareceu soar mais alta ao final do expediente da quarta-feira. A massa de operários, enquanto se afunilava nas catracas para bater o ponto de saída, também mostrava um frenesi diferente, ainda que muitas daquelas almas preferissem trabalhar no dia seguinte em troca de horas-extras, por necessidade ou desinteresse anímico pelas catarses de cunho coletivo.
Fosse fevereiro nestas plagas, talvez remontássemos ao chavão "pra tudo acabar na quarta-feira", mas dessa vez, as "cinzas" serão na segunda.
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