Entredentes

_Maldito mormaço! - rosnou entredentes o sempiterno resmungão, aludindo à tórrida umidade atmosférica a primazia por seus percalços.
A ventoinha no painel vibrava inútil, fazendo circular ar-quente no interior do Escort, lançando partículas de poeira nos sulcos faciais do enfadado caixeiro-viajante, que ao se misturar com o suor em profusão de sua testa, desfiava em filetes pelo pescoço, emporcalhando o colarinho branco desabotoado, circundado por uma inacreditável e frouxa gravata amarela com estampas do Bob Esponja.
Não bastassem o insuportável calor, o ronco da ventoinha, o cansaço do fim de tarde, um porta-malas repleto de porta-retratos encalhados e a carteira vazia, agora se deparava com o trânsito parado à sua frente, impedindo que acessasse a via principal, no rumo de seu ainda distante recôndito familiar, onde sua mãe aguardava sua chegada para assistirem juntos à novela das sete e ao culto televisivo subsequente, rotina a qual se dedicavam literal e religiosamente.
O veículo que fechava seu acesso à via principal era um desses compactos importados da China, o qual desconhecia marca e modelo, conduzido por uma balzaquiana indedefectivelmente paramentada com um vestido floral e a julgar pelos vidros fechados e aparente descontração, estava à salvo do calor graças a um eficiente e ativo ar-condicionado.
Em seus diálogos internos, o suarento vendedor começou a maldizer o aquecimento global, as péssimas condições viárias, a indústria automotiva chinesa, o mercado saturado de concorrência no ramo dos porta-retratos... Sobrou azedume até para a madame que bloqueava sua passagem, que em sua concepção hipercrítica, devia ser uma desocupada sustentada pelo marido que gastava tempo, dinheiro e combustível em uma romaria por cabeleireiros, manicures, esteticistas, massagistas, depiladores, costureiros, amantes e shopping-centers, enquanto ele ralava de sol a sol pela região para garantir o pão de cada dia.
Para piorar seu estado de espírito, numa dessas situações em que pequenas contrariedades pessoais se congregam em histeria coletiva, vários motoristas, impacientes com a demora, começaram um buzinaço, ensejo que nosso herói tomou como um convite a passar do diálogo interno ressentido ao berreiro agressivo e insano contra tudo e todos.
Enquanto entochava uma das mãos na buzina, com a outra abriu o vidro lateral e começou a desfiar um leque de impropérios, tendo como alvo a distinta motorista à sua frente:
_Perua vagabunda, dondoca inútil, enfie esse carro chinês na garagem e vá procurar o que fazer! Se gosta tanto de Chinês, vá pra China e deixe as ruas daqui para quem precisa trabalhar!
Mesmo com os vidros fechados, era impossível à mulher ignorar aquele ogro  buzinando, gesticulando e urrando, com meio corpo enfiado para fora da janela do Escort, mas impávida e elegantemente, ela apenas olhou a cena e tornou a atenção à frente, onde finalmente o trânsito começou a fluir.
De maneira solidária, a motorista virou o volante e deslocou seu carro levemente à esquerda, abriu o vidro da janela do carona e fez um gesto ao vendedor para que entrasse à sua frente.
Aproveitando a gentileza inesperada, o cidadão destemperado conduziu seu veículo ao espaço cedido, não sem antes ladear o carro da mulher e reconhecê-la como uma das enfermeiras que cuidaram dele na ocasião em que infartou e ficou vários dias hospitalizado.
Constrangido, deu um toque de buzina agradecendo e caprichou no sorriso amarelo enquanto acenava para a outrora destinatária de sua insanidade.
E num átimo de lucidez, próprio da reflexão a partir de um desatino, ele deu graças por descobrir quem era, graças a uma pessoa que ele não sabia quem era.
E quem ele era, nunca mais foi a partir de então.

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