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Mostrando postagens de fevereiro, 2025

Lapso Insone

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E lá estava eu novamente... Outra madrugada ao relento, o corpo sonado estendido na rede, mas os sentidos aguçadíssimos, ávidos pelos sutis estímulos proporcionados pela penumbra da lua minguante. O quase nada a se ouvir ao redor disputava a atenção com o rebuliço que ribombava em minha mente, tornando a experiência de estar desperto em uma agonia sensorial digna de um surto esquizofrênico. Um pássaro, talvez uma coruja, piava num compasso arrastado e repetitivo, dando a impressão de dizer, de forma zombeteira: "durma, duuurmaaa". Meus pensamentos, à revelia de minha intenção, rogavam imprecações à ave agourenta, como que sua expressão natural fosse na verdade, uma provocação a este ser insone. Diálogos internos se sucediam em imagens mentais aceleradas, evocando longínquos episódios da vida, invocando gente que nem mais existia, à revelia de minha vontade, que era apenas não enxergar mais nada enquanto os olhos estivessem fechados. "Que droga" - pensei, vocalizando...

Sobre despedidas e bolinhas de gude

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Joãozinho veio ao mundo sem saber o porquê, em pouco tempo já engatinhava e balbuciava afeto com estridentes monossílabos e quando se deu conta, já ficava em pé e ensaiava corridinhas curtas com a desenvoltura de um potrinho em seu primeiro galope. Alguns meses se passaram, sua curiosidade o movia na direção de seus interesses e tudo era descoberta, encanto e estranhamento, à medida em que seus olhinhos faiscantes, de um verde acinzentado, perscrutavam seu derredor: uma folha de árvore caindo em rodopio até pousar nas plácidas águas do laguinho, as gotas de chuva escorrendo nos vidros da janela da cozinha, o arrulhar das pombas que se aninhavam no forro do telhado sempre que o sino da igreja anunciava as seis da tarde, o cheiro de sabão de coco que o travesseiro exalava, todas as vezes em que sua mãe trocava a roupa de cama...  Mas o clímax dos dias sempre eram as partidas de bolas de gude jogadas com seu priminho Zequinha, onde o objetivo de ambos era conquistar todo espólio de bo...

Emoções Químicas

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Não foi o despertador, nem a tênue claridade da tenra manhã, tampouco o arrulhar do alvorecer das aves do arrabalde que me acordaram às seis horas da manhã neste domingo. O retorno ao ânimo vivente se dera como que por uma espécie de obrigação cotidiana, uma imposição da repetição dos dias, algo próprio daquilo que é fatídico, involuntário, compulsório e premente. A rotina sucederia o torpor que se esvaía à medida em que os raios de sol invadiam o quarto pelas frestas da janela de madeira empenada: necessidades fisiológicas, asseio, desjejum, comprimidos, estupefaciência psicotrópica, prostração, diálogos internos e o embate diário entre a imposição de ressignificar a existência ante o acachapante e irresistível sentimento de desesperança e fatalismo. Uma estranha sensação de despersonalização me afligia, dando a nítida impressão de que mente e corpo não se fundiam em mim, mas eram entidades independentes, que numa simbiose estranha, possuíam arbítrio à revelia de minha vontade. Estáva...

Lágrimas pluviais

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A garoa se fez tempestade enquanto eu amassava as nádegas no banco da parada de ônibus por um quarto de hora, observando as gotículas bruxuleantes ao sabor do vento engrossarem em grossos pingos, para depois percutirem em granizo na cobertura do abrigo, no ritmo de uma bateria de escola de samba acelerada e descompassada.  A ansiedade crônica que me acometia há tempos fazia o coração disparar e por um breve momento, achei que meus batimentos cardíacos competiam com a percussão do granizo pela primazia do ritmo mais descompassado, acelerado e bizarro que fosse possível.  Um ônibus surgiu na esquina, acelerado, com os limpadores ligados num vai e vem desordenado e um dos faróis queimado, sem aparentar que seu condutor tivesse a intenção de fazer a parada, ainda que eu me levantasse parcialmente, acenando timidamente com um dos dedos da mão apontando para cima. O coletivo confirmou minhas expectativas pessimistas, passando direto em alta velocidade e ignorando meu sinal, não sem...