Lágrimas pluviais

A garoa se fez tempestade enquanto eu amassava as nádegas no banco da parada de ônibus por um quarto de hora, observando as gotículas bruxuleantes ao sabor do vento engrossarem em grossos pingos, para depois percutirem em granizo na cobertura do abrigo, no ritmo de uma bateria de escola de samba acelerada e descompassada. 
A ansiedade crônica que me acometia há tempos fazia o coração disparar e por um breve momento, achei que meus batimentos cardíacos competiam com a percussão do granizo pela primazia do ritmo mais descompassado, acelerado e bizarro que fosse possível. 
Um ônibus surgiu na esquina, acelerado, com os limpadores ligados num vai e vem desordenado e um dos faróis queimado, sem aparentar que seu condutor tivesse a intenção de fazer a parada, ainda que eu me levantasse parcialmente, acenando timidamente com um dos dedos da mão apontando para cima.
O coletivo confirmou minhas expectativas pessimistas, passando direto em alta velocidade e ignorando meu sinal, não sem antes me brindar com um banho da água suja empoçada num buraco estrategicamente posicionado em frente ao ponto.
Pensei em praguejar meu infortúnio em imprecações direcionadas à genitora do motorista, mas meus ânimos serenaram quando constatei que aquele ônibus não era o que eu estava esperando. A lógica do "pelo menos" impediria que minha gastrite virasse úlcera, ao menos por enquanto.
A tempestade persistia firme e forte, com relâmpagos singrando as grossas nuvens escuras, formidáveis trovões ribombando em dolby surround 3D e a água no asfalto evoluindo de poças d'água a um caudaloso curso pluvial que ocupava toda a avenida, com direito a correnteza e tudo. 
Minha esperança em retornar para casa utilizando o transporte coletivo ia por água abaixo, ainda que houvesse a possibilidade possível, mas improvável, de passar algum barco por ali que pudesse me servir de carona.
Superadas as fases da raiva e da negação, percebi que a partir dali, só me restava barganhar com a realidade, para evitar cair nos estados de depressão e aceitação, até porque, caso contrário, meu destino certo seria o afogamento. 
Descalcei meus sapatos e meias encharcados, guardei-os na mochila arregacei as bainhas das calças até as coxas, e resolvi encarar os quase cinco quilômetros até minha casa a pé, sopesei os prós, contras, riscos e benefícios, e empreendi meu curso, ainda que ciente que o final da jornada poderia ser a nado.
Enquanto eu caminhava, digo, chafurdava no lodaçal de água suja, sacos de lixo flutuantes, ratos nadadores fortuitos e detritos indistinguíveis disputavam comigo o percurso mais raso, que eu considerava ser a calçada, ainda que fosse impossível ter certeza disso. Conjecturei com meus molhados botões que acreditar que cada passo que eu dava não daria num buraco que me engolisse era algo análogo à fé religiosa. 
O batuque desenfreado do meu coração, assim como o açoite do granizo no topo da cabeça serenaram e pela primeira vez naquele dia úmido, encontrei pretexto para um sentimento que não fosse angústia ou desesperança.
Esquinas alagadas, praças inundadas e logradouros ensopados se sucediam enquanto eu imergia em meus diálogos internos e quando menos esperava, meu humilde recôndito se avistou adiante.
Assim como nas outras residências, a lâmina d'água atingia as maçanetas das portas e alguns vizinhos atarantados se espalhavam pela rua, em grupos ou isoladamente, discorrendo em uníssono suas desventuras entre si.
Cinquenta minutos e quase cinco quilômetros depois, lá estava eu diante da minha casa e não havia expectativas, mas certeza do que eu encontraria quando finalmente abrisse a porta. 
Apesar do tamborilar da chuva ter cessado, dessa vez meu coração acelerou em descompasso, enquanto eu buscava em meu íntimo motivações que me evitassem o desespero. 
E foi neste estado de espírito evoquei a voz doce e reconfortante de minha saudosa mãe que me disse certa feita: "Quem sai na chuva é pra se molhar, meu filho."
Uma lágrima escorreu em meu rosto, se misturando à água da chuva que umedecia minha face. 
Respirei fundo, girei a chave no tambor e abri a porta. Afinal de contas, querendo ou não, a vida continua...

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