Sobre despedidas e bolinhas de gude
Joãozinho veio ao mundo sem saber o porquê, em pouco tempo já engatinhava e balbuciava afeto com estridentes monossílabos e quando se deu conta, já ficava em pé e ensaiava corridinhas curtas com a desenvoltura de um potrinho em seu primeiro galope.
Alguns meses se passaram, sua curiosidade o movia na direção de seus interesses e tudo era descoberta, encanto e estranhamento, à medida em que seus olhinhos faiscantes, de um verde acinzentado, perscrutavam seu derredor: uma folha de árvore caindo em rodopio até pousar nas plácidas águas do laguinho, as gotas de chuva escorrendo nos vidros da janela da cozinha, o arrulhar das pombas que se aninhavam no forro do telhado sempre que o sino da igreja anunciava as seis da tarde, o cheiro de sabão de coco que o travesseiro exalava, todas as vezes em que sua mãe trocava a roupa de cama...
Mas o clímax dos dias sempre eram as partidas de bolas de gude jogadas com seu priminho Zequinha, onde o objetivo de ambos era conquistar todo espólio de bolinhas do outro, para que quando isso ocorresse, voltassem a distribui-las igualmente entre si e começar tudo de novo.
O dia amanheceu nublado naquela quinta-feira de Corpus Christi e Zequinha correu a chamar Joãozinho para irem à praça da matriz ajudar a enfeitar o tapete da procissão, mas sua tia lhe disse que o primo tinha amanhecido febril e não sairia de casa naquele dia.
Joãozinho não saiu de casa no dia de Corpus Christi, assim como também não comemorou seu terceiro aniversário na sexta-feira subsequente, pois a febre que lhe prostrou, também levou sua alma para o céu das criancinhas.
E a partir desse dia, os viventes que visitam o cemitério nos dias de Finados não conseguem evitar a comoção ao passar por aquele pequeno túmulo azulejado, ao vislumbrarem aquela singela cruz formada pelas bolinhas de gude que Zequinha levou no dia da derradeira despedida a seu primo Joãozinho.
P.S.: A história é fictícia, mas a sepultura é real.
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