Postagens

Mostrando postagens de junho, 2020

Ciclos

Imagem
Elevam-se e condensam Em lapso precipitam Intenções levadas a termo Torrentes do ser tornado vivo Águas caídas, caudalosas Em cálidos cursos Erráticos ao derradeiro fado Dos plácidos lagamares Tortuosos flumes  Profundos mares Sentimentos represados No limiar do romper da presúria Algures aluviem, insensatos frutos Na vida o sentido Da natureza, o destino.

Quimera

Imagem
Outrora viço, agora mágoa, tornado remorso Vulnerável é o ânimo, escravo das vivências Que por tortuosas linhas rascunha o malgrado feito fátuo Por não ter para si o que oferece a quem não quer, qual volúpia imerecida Recebido como capricho, assaz venal, feito nobre coisa rota Rastejando a face lívida na ampla tez de um corpo indiferente Na morna nulidade de prostrar banal, a quimera do sonho profanado.

Crepúsculo

Imagem
O crepúsculo se avizinhava, o sol fenecia em gradientes pastéis, os esparsos cirros riscavam de branco o que restava de azul no firmamento, o cálido mormaço cedia vez à aragem fresca que aguardava o escurecer para tornar-se gélida e fustigar os incautos que ignoravam que a lua crescente traria dali a pouco, a primeira noite de inverno. Alheio ao clima, à estação do ano, ao livro que trouxera e não lera e ao fluxo dos transeuntes rumo ao portão do parque que fecharia dali a pouco, acomodou-se no banco de madeira e passou a observar o frondoso suinã que interpunha-se entre ele e o sol poente. O carmim salpicava toda a copa, variando entre botões assemelhados a feixes de pimentas e flores desbragadamente desabrochadas, projetando rubros pistilos, brincando com os olhos, quais falenas bailarinas. As folhas, em contraste à pirotecnia voluptuosa das inflorescências, como que resignadas coadjuvantes, precipitavam em lotes, amarelecidas, rodopiando e tecendo erráticas trajetórias até pousarem ...

Um sábado qualquer

Imagem
Era sábado mais uma vez. E condicionado que era aos ciclos que definiam sua rotina, sujeitou-se ao esperado de uma folga hebdomadária, concedendo-se um passeio que o salvasse do ócio acachapante. Decidiu perambular pelo centro da metrópole e se dar uma chance de ter da vida, das pessoas e do acaso, mais que outro sacal estupor sabatino. Há muito desfrutava de uma solidão relativa, preenchida com relações voláteis, socializações impostas, miríades de irrelevâncias preenchendo seu vácuo vivente, ocupando seu tempo e consumindo suas forças, mas sem alimentar seu espírito. Elucubrando ia pelo Largo da Matriz, quando apiedou-se de um semelhante em situação de penúria que esmolava entre cães, com tal roto aspecto que sensibilizaria até o mais rude avaro.  Estendendo-lhe a mão contendo um óbolo que lhe aplacasse momentaneamente a carestia, surpreendeu-se em notar uma outra mão reproduzindo o mesmo gesto. E a surpresa foi maior ao notar que ambas as mãos continham os mesmos cinco reais, ai...

Terrores Noturnos

Imagem
Despertou num sobressalto, contemplando a completa escuridão do recinto. Nada poderia ser mais assustador e pleno de desesperança que os oníricos enredos de seus recorrentes pesadelos, mas a realidade teimava em contrariar esta premissa. A testa suada em oposição aos pés gelados, a taquicardia parceirando a ofegância, a adrenalina tornando a mente escrava de emoções reptilianas, tudo era a supremacia do sentir sobre o pensar e há muito, sobreviver era conviver com temores, à espera de torpores que cessassem a dor de persistir na existência. Tentou apelar às memórias, buscando compensações do passado que urdissem algum contentamento que suplantasse a angústia, mas ao constatar que para cada prazer advinha uma culpa, esvanecia os excertos de vivência com esgares e meneares aflitos de sua cabeça confusa. O buraco estava ali de novo e não era mais algo conceitual que lhe possibilitasse descrever um estado de espírito, mas a definição cabal do castigo por ter nascido e persistido em viver. ...

Determinismo atmosférico (cativo arbítrio)

Imagem
Ocasiões há em que os fatos do cotidiano como que catalisam o clima das estações do ano e por mais que nos esforcemos em ignorar o torpor dos outonos, a frieza dos invernos, o frescor das primaveras e a intensidade dos verões, estes teimam em estigmatizar nossas sensações, contaminando o élan ocasional que nos acomete ou se interpondo à sempiterna angústia existencial que a natureza nos brindou, como que um castigo em decorrência de nosso potencial pensante. O esforço, às vezes hercúleo, de violentar nossas preferências e vontades em prol do jugo de engodos e irrelevâncias travestidos de obrigações é um convite a refletirmos se estamos realmente aptos a assumir o ônus de pertencermos a nós mesmos ou então, encarar a predestinação advinda dos estados de espírito como fator subentendido e determinante de nossas ações, as quais ilusoriamente aludimos algum arbítrio. De mim, o porvir das estações testará seu fatalismo e sinto muito por dizer: De ti, certamente também.

Orate - Capítulo I - A Escória

Imagem
Ele acabara de adentrar o botequim.  O caminhoneiro que lhe dera carona já estava ao balcão, com um copo de aguardente pela metade e uma garrafa de cerveja aberta, à mercê de sua sede viciosa.  Duas meretrizes ao lado já se achegavam, ávidas por cigarro, álcool e dinheiro.  O caminhoneiro galhofamente apontou-lhe a uma das acompanhantes, enquan to lhe cochichava algo ao ouvido.  Confidência ou coisa que o valha realizada, a prostituta veio em sua direção, o dileto carona, pelo visto o mais novo amigo do viajante e antes que se dissesse algo, a puta o pegou pela mão e foram ao balcão. Entre perdigotos, precedendo um gutural arroto, disse o motorista ao acompanhante:  “E aí, chefe? De mim só queria a carona, não amizade? Encoste aí no balcão e peça o que quiser, pois você é gente boa e pessoas assim merecem minha consideração!” Passou então a conjeturar se o que despertava a generosidade no galhofeiro era realmente sua simpatia, mas a julgar pelos ...

Orate - Prólogo

Imagem
O barulho da chuva que fustigava as carcomidas persianas de madeira do velho quarto de motel acordou-o precocemente de um sono, que apesar de povoado de sonhos tão ruins quanto merecidos, lhe poupava do dedo sempre em riste de sua consciência inquisidora. O s lençóis fétidos e amarfalhados pelo rolar de sua carcaça infame, mera garatuja do viço de outrora, absorviam a exce ssiva sudorese oriunda de seus temores oníricos. A atmosfera era de clausura, com o sarro de seu hálito pútrido se misturando ao miasma do bolor das paredes. O semblante do infeliz, oculto pela penumbra, só se vislumbrava por obra de esparsos relâmpagos, cuja luz invadia mal-vinda e inefável por entre os não poucos vãos do mosaico de madeira que ousava chamar de janela. Com o torpor do sono aliado ao resquício do álcool em suas veias ainda a lhe toldar o raciocínio, tateou em vão em busca do relógio que deveria estar sobre o criado-mudo, porém o máximo que conseguiu foi derrubar um copo vazio que se despedaçou no...

O Natal Nosso de Cada Dia

Imagem
Em seu calvário cotidiano, deu graças pelo fim de mais um dia. Enquanto puxava sua carroça repleta de papelão, olhava ora com curiosidade, outras com admiração, as ruas enfeitadas, enquanto percorria as contrastantes veredas do centro da metrópole rumo àquele cubículo de concreto sem portas ou janelas, onde por cima circulavam automóveis e embaixo, a célere e indiferente  fauna urbana. Não fosse pela inabitual cortesia enlevada pelo interessante efeito que essa época causava à agora nem tanto rude plebe ou talvez àquele pulsante pisca-pisca que substituía o lusco-fusco de sempre, aquele dia entre os demais trezentos e sessenta e quatro passasse desapercebido às suas futuras memórias, porém uma surpresa o aguardava amarfalhada entre os podres panos que protegiam do relento sua família: aquele "mais um" que no ventre de sua companheira era uma incerteza como fora sua predecessora prole, ali estava, esquálido, nu, protegido de uma realidade atroz e abençoado com uma gama d...

O Porvir Por Não Ser

Imagem
Estávamos num restaurante, apenas nós dois sentados à mesa e um garçom a nos servir.  Na mesa um salmão de um carmim intenso, uma garrafa de vinho tinto envolta em um guardanapo de pano branco.  Toalhas de mesa e cortinas, assim como o uniforme do garçom, todos brancos.  O salmão jazia em nossos pratos, mas não havia talheres nem copos.  Você parecia não se importar e sorria, contrastando com meu desespero na iminência de te decepcionar de alguma forma.  Seu sorriso persistia a dizer tudo e muito pouco; seus olhos de soslaio, me fitando.  O garçom permanecia impávido ao lado da mesa.  Tentei dizer a ele que trouxesse os talheres e os copos, mas não conseguia emitir nenhum som.  Cambiando olhares entre você e o garçom, muito desconcertado, tentei levantar.  Acordei neste ímpeto de pôr-me de pé, aturdido entre a vigília e o confortável estupor.  Você se foi, esvanecida numa etérea inconsciência que já começava a deixar saudades. ...