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Mostrando postagens de 2021

Natalicídio

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Quisera um anjo ter-lhe oferecido a dádiva de um rebento que fosse querido e predestinado a grandes feitos, mas sua prenhez era fruto de uma violência a qual não pôde se defender. E naquela noite da véspera de Natal, suas contrações doíam menos que o medo do porvir. Na fria calçada da estação ferroviária, o papelão era sua cama e a solidão, sua companhia. A resposta a seus gemidos eram os ecos que ouvia, abafados pelo ruído das grossas gotas de chuva que precipitavam do éter. Não havia mãos a ajudar senão as suas e na impossibilidade de se despir, rasgou num átimo seus andrajos, abrindo caminho para quem haveria de conhecer em muito breve, a fria atmosfera de um dia chuvoso e a gélida indiferença de uma sociedade apodrecida. O papelão embaixo de si, encharcado de chuva e líquido amniótico, tingia-se de um rosa, que aos poucos tornava ao vermelho. As pernas sujas e esqueléticas se abriram, enquanto o esquálido torso se apoiava para trás sob braços finos, com múltiplas perfurações supura...

Evoé

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           Noites escritas em letras e vinho          Ocultas do luar por paredes e teto          Povoadas por amantes, brindadas a Baco          Com corpos nus, na cúmplice busca do gozo          Ao sabor um do outro, pele, mucosas, dentes e línguas          Numa dança lúbrica, entre contrações e gemidos          E pelas frestas da persiana, invasivos e reveladores          Fiapos de luz banham os dorsos suados com invejoso luar          Como fustigados fossem por Selene, em triste solidão          Pelo pecado do êxtase que teimavam em ostentar          Entre idas e vindas, dentro e fora de si, em corpos e sentidos          Qual siameses com a promessa de uma infinitude efêmera  ...

Campo-santo

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Uma silhueta encapuzada surgiu de relance, vinda do arvoredo. Seu vestido púrpura, de longas bainhas de renda negra, escondia os pés que o conduziam, farfalhando ao roçar as folhas secas, dando a impressão que a aparição de tons ígneos flutuava pela noite de pleno luar. A ambiência do sepulcrário, invadido pela batalha, compunha-se do som de espadas percutindo carne, ossos e metais, tochas flamejando e  imprecações que sucediam lamentos de agonia, que foram cessando à medida em que o assombro crescia, catalisado pela visão da rubra silhueta. Como que zumbificados, invasores e moradores largaram suas armas e caminharam, trôpegos e ofegantes, em direção ao espectro escarlate. As carcaças mutiladas, prostradas e besuntadas em sangue, mesmo despidas do élan vital, arrastavam-se atrás dos vivos, preenchendo a atmosfera com ulos fantasmagóricos e nauseabundo odor de morte. Aos poucos, mortos e vivos circundaram a aparição, formando um cerco estático, como um assédio ao vulto carmesim. Um...

Fome

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Após pagar a passagem no guichê, seus bolsos ficaram tão vazios quanto o bucho que roncava. E a volta e meia no relógio que faltava para seu embarque era promessa de um martírio famélico portentoso, até que pudesse recostar na poltrona do busão e dormir por todo percurso para não se lembrar do vácuo no abdômen, onde havia mais costelas que gordura. A fome fazia com que a cabeça não funcionasse direito. Tinha momentos de ausência, onde pensamentos esdrúxulos escanteavam a razão e a percepção da realidade. Num desses arroubos de insensatez,  imaginava-se um modelo fotográfico ou manequim de desfile trajado com o fino da moda, circundado de ávidos olhares femininos, cheiroso e limpo, no limiar de fartar-se de acepipes num desses restaurantes de luxo, que só sabia da existência por ter folheado uma revista de fofocas enquanto se aliviava numa das privadas nauseabundas da rodoviária. O delírio foi abruptamente dissipado por mais um agonizante rugido de suas aéreas entranhas. Decidiu and...

Café e Cevada

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Em uma manhã de segunda-feira, na padaria de sempre, os colegas se encontram antes de iniciar o batente. _Passe o açúcar. De amarga basta a vida, quanto mais café. _Ficou louco? Você é diabético.  _E essa cerveja aí, às sete da manhã? Também mata e é amarga como café sem açúcar. _Amigo, não sou mais casado justamente porque não gosto que deem pitaco nos meus gostos. E olha que minha ex-mulher tinha xana. Você, nem isso. _Coleguinha, você que me encheu o raio do saco quando te pedi o açúcar. Está explicado porque a gostosa da sua ex-mulher te trocou pelo ascensorista. Você é chato demais. _Bicho, perder mulher pra ascensorista pouco me afeta. Triste seria perdê-la para um folgado que não presta nem para adoçar o café sozinho. _Você não precisa de mim para ser corno, brother. Basta arranjar uma mulher e esperar o dia seguinte para ela te trocar pelo primeiro cara que cruzasse o caminho, não por escolha, mas por necessidade. _Pode até ser, mas pelo menos eu não sou um inútil que preci...

De Profundis

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Enviezados seguem os passos descuidados A conduzir, trôpego, o timoneiro da esperança perdida Por mais que das tormentas advenha a bonança O fado vil, como carma, transmuta ouro em flandres Das promessas, agouros frustram a fortuna Tornando em óbolos as conquistas imerecidas Consumindo a essência, o âmago é o que resta Desnudando ao roto a alma em frangalhos Augúrios tardios da outrora quimera Lívida agora, conquanto esvanecida Até que o gozo seja apenas nostalgia.

Original Pecado

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Eu era Adão, despertando com o gosto de maçã na língua cansada das notívagas incursões naquele corpo ainda adormecido, prostrado no torpor do deleite. E a perdição, ainda  prostrada em lençóis, ressonava qual felina, desafiando sua face a expressar alguma sensação que não fosse sereno contentamento. A fresta na janela deixava perpassar um fio de luz, qual holofote, que à medida em que profanava o templo de minha volúpia, revelava convidativas nádegas, despudoradamente expostas pelo capricho de um cobertor amarfalhado. Os cabelos bagunçados, qual ráfia desfiada, acortinando com grandes rasgos aquela tez acetinada, que circundava carnudos e carminados lábios, entreabertos, quase num convite involuntário à luxúria. Seus olhos se entreabriram, confrontando meu olhar, para então me brindar com uma piscadela. Despiu seu semissorriso onírico, mordiscando o lábio inferior, num desafio explícito à minha libido, ao qual servilmente retribuí com uma ereção. E num átimo de consciência, ao cede...

Depressão pós-coito

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Findo o êxtase, as impressões. E o silêncio ofegante era o abecedário que continha mágoas suplantadas pelo êxtase que ainda teimava em subsistir, ignorando a letargia que se apossava dos corpos por si consumidos num embate mútuo a favor de ambos. O script era o mesmo de sempre: idas plenas de autoestima inflada pela ocitocina e hiatos de presença pelas impossibilidades sociais compartilhadas, seguidas por reencontros famintos, onde o imponderável era escravo do inexorável. Como todo ciclo, em seus meandros, as particularidades do relacionamento, se é que assim pode ser descrito, descreviam parábolas, paralelas e tangentes, envolvendo terceiros, aspirações não contempladas, ligações não atendidas, ciúmes contidos, porres terapêuticos e promessas de ruptura jamais levadas a termo. E assim passaram-se anos. Décadas... E mais uma vez prostrados entre braços e pernas entrelaçados, nos lençóis maculados de secreções, refletidos no teto por um espelho inquisidor, a reflexão era a mesma: Tudo ...

Travessia

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Perdi-me em ti, buscando a mim E nas veredas do engano, atalho não havia E nos atalhos que escolhi, quão longe me vi Marcando passos em dores, nos espinhos que escolhi Pés descalços, em estrepes cingidos, sangram sem singrar Os caminhos percorridos, cujo fado é fatigar A vontade outrora férrea, em lamentos vir tornar Como fosse certo o deleite, sem por isso pelejar Sob o jugo do que sinto, a razão é cativa E nem dos andrajos, o sangue, a lágrima e o suor Doem tanto quanto a ausência Finda a jornada, o destino atingi Achei-me em mim; perdi a ti.

Oco

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Preenchi-me com o vazio e ocupei espaços com nada O vácuo persistiu, o oco ganhou contornos E em tudo que persistiu O inexistir se fez querer Tornando em plasma que consumia A matéria tornada refugo.

Efêmero

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As horas seguem céleres, inexoráveis marcadores de um repouso nunca suficiente. Mas aos que, despertos pela angústia, percorrem a órbita do relógio em ciclos completos e intermináveis, os segundos se tornam horas. E aos cadáveres, também os viventes, de pouco adiantará estarem os olhos abertos ou cerrados Pois de cada fado, viver ou fenecer, jamais serão libertos do fatídico porvir.

Excertos erráticos

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Quintana ou Victor Hugo decantariam a melancolia como a tristeza romantizada ou até uma espécie de contentamento em estar triste, mas o fato é que alguém estava sentindo algo que os clássicos vetustos talvez tivessem melhor definido que vivenciado. Já há duas semanas, o burburinho das repartições, o alarido dos comércios, a cacofonia dos sentimentos haviam cedido espaço em sua vida para um estupor inicial, que aos poucos tornava-se em tédio e agora tingia de sépia o mundo, as sensações, as vontades e os seres cada vez mais ausentes e distantes, essas imprevisíveis criaturas, as pessoas. Viver em quarentena deveria ser a antítese de morrer no habitat amplo, mas o óbito das possibilidades, a certeza do distanciamento e o inexorável do imponderável traziam à consciência um torpor que se insurgia contra a esperança, na medida de um mar que circunda um náufrago. No limbo de sua abulia, fomentava devaneios, que invariavelmente eram suplantados em urgência por dilemas relacionados à subsistên...

Urgente!

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Sobre urgência, postergações, procrastinações e afins: Só quem tem o irresistível impulso de deixar para amanhã aquilo que deveria ter sido feito ontem pode entender a vontade que estou de postergar para algum outro dia, aquilo que me propus escrever agora nestas mal traçadas linhas virtuais. Afinal de contas, perceba:  À parte os casos de vida ou morte, tudo o mais que mereça a alcunha de urgente obedece ao crivo das pertinências de outrem, com as devidas menções aos autoritários, mimados, impacientes, intermediários da burocracia e demais corruptelas da premência, que nos fustigam cotidianamente com suas sempre inadiáveis demandas. Quem nunca recebeu uma ordem superior quanto a alguma tarefa "urgente", que ao nos consumir competência, preocupação, articulações pessoais e horas de trabalho, às vezes às custas do descanso e do lazer de direito, teve seu primor de resultado engavetado para a posteridade ou esquecido sobre alguma empoeirada escrivaninha por aí? Pior:  E quando ...

Ludum Vivere

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Era um prédio erigido em juscelinas eras. Não tinha o ar vetusto das construções seculares que persistiam em abrigar estabelecimentos por aquelas plagas e as grades que o circundavam lhe conferiam uma aura de austeridade que oprimia mais a percepção de quem observava do que aquele que o habitava. Esta arquitetura peculiar abrigava a mais variada fauna pedagógica:  Sisudos bastiões de uma permanentemente afrontada dignidade docente; Simpáticas senhorinhas de conservadores modos a desfilar por passadiços, sempre abraçadas a livros, cadernos e calhamaços de almaços;  Púberes aprendizes, alguns insolentes, outros em sincero esforço em aprender e um sobejo apenas pondo em prática o que não aprenderam em casa e cujos pais delegaram à estrutura a responsabilidade que lhes cabiam;  Adolescentes em joculares vestes, cortes de cabelo esdrúxulos e trejeitos estereotipados que não os definiam, porém os identificavam com as respectivas vertentes estéticas em voga;  Onipresentes b...