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Mostrando postagens de maio, 2023

Triângulo imperfeito

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  Na distração habitual de um passeio fortuito, meu olhar distraído foi capturado pela silhueta que me singrou o rumo, furtando minha atenção. Sabendo da iminência de minha perdição, ousei mirar os olhos que, ao arrepio da prudência, fitavam descaradamente os meus. Por um instante, ambos ignoramos o braço que enlaçava o gracioso cós da pretérita ninfa e que a retinha cativa ao corpanzil de ogras formas de seu indesejado acompanhante. Como fosse coreografia de um balé farsesco, nossa atenção convergiu temor e constrangimento às feições do golias ressurreto. Pensei e temi qual seria sua reação diante de tão confesso e imperdoável acinte? Empinando o nariz com altivez, estufei o peito numa profunda inspiração, prevendo a reação do orc ofendido. Enquanto eu decidia pela dissimulação ou pelas desculpas, o casal veio a mim. E antes que eu pudesse verbalizar um cumprimento, o Quasímodo, como num desajeitado passo de tango, abraçou sua Esmeralda e a impôs um torturante e roubado beijo. No...

Noir

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  Erik Satie dedilhava Gymnopédie em algum piano num passado distante, e num capricho da tecnologia, os delicados acordes vinham do lado de fora da janela e preenchiam os espaços da sala escura e vazia, onde jazia minha carcaça ouvinte, ali, no chão, sobre uma esteira puída de vime, acompanhado de uma garrafa de vinho pérgola barato, consumida pela metade. Recomeços são melancólicos, muito mais que alvissareiros, e no limiar entre a meia-idade e a velhice, esta verdade soava como dogma. O caminhão da mudança só chegaria amanhã, e aquela esteira finíssima que estabelecia a fronteira entre meu corpo combalido e as tábuas corridas do assoalho dava sinais de que não forneceria nenhum conforto para a noite que se prometia insone. A penumbra do quarto era profanada por chistes de neon fugidios, vindos do letreiro do hotel do outro lado da rua, que bruxuleavam em fractais no chão e nas paredes, dando àquele vazio de objetos e ânimo, uma psicodélica impressão de desalento. À medida em que...

Epitáfio marginal

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  Acelero mais uma vez nesta avenida que parece não ter fim. O sol do poente me cega, enquanto gotas de suor se misturam às lágrimas que insistem em não cair. A cacofonia vinda das calçadas urra aos meus ouvidos, mas o que escuto é o matraquear dos diálogos internos na minha mente. O caminho que trilho insiste em me perseguir a cada olhada no retrovisor e os prédios à frente parecem correr em minha direção para me esmagar, enquanto continuo acelerando. Há quatro lugares vazios no carro, mas o miasma da multidão que já os ocupou ainda persiste em me fazer companhia. O ocaso se torna noite, toldando a visão e aguçando a sede de viver, que por falta de fastio, é mero apego a uma persistente agonia, novo nome de uma defunta chamada esperança. E é assim, fugindo de meus diálogos internos, da multidão que me assombra, dos infinitos olhos dos edifícios que me cercam, dos caminhos que insistem em se tornar precipícios e dos espelhos que me negam reflexos e entregam zombarias, virei à direi...

Playground

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  Com a xícara nas mãos e a cigarrilha nos lábios, peguei aleatoriamente um dos tomos da prateleira. Conferi o título: Iluminuras. Parecia o dia perfeito para expor Rimbaud ao crivo do meu mau humor matinal, ainda que me sentir um coelho entre campânulas rogando preces ao arco-íris estivesse bem aquém do meu contumaz azedume. Minhas mãos trêmulas nunca foram boas cúmplices de minhas intenções e enquanto meus neurônios tentavam articular esforços para administrar em conjunto nicotina, cafeína e celulose, consegui incendiar o robe com a cigarrilha, para logo em seguida encharcá-lo de café. Menos mal que o Rimbaud sobreviveu ileso ao abrigo da mão esquerda, enquanto a direita fazia-me o obséquio de lançar fora do corpo aquele tecido amarfalhado, queimado, ensopado e pleno do bodum característico de vestuário muito usado e pouco lavado. Enquanto me vestia, lancei olhar àquele livro, um dos muitos que compro para ler depois (ainda que esse depois nunca chegue), e a capa consistia num fu...

Pedrete

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Lá estávamos no coletivo, tradicionalmente acomodados nas últimas poltronas, trocando ideias, desfrutando da melhor hora da labuta, que é a de ir pra casa, e dentre outras amenidades proferidas para encher linguiça, meu colega desabafa: _Pô, cara, o Pedrete é foda! _Conheço esse cara não... _Como não conhece, meu? O Pedrete! - protestou o interlocutor quase indignado. _Amigo, não conheço esse tal Pedrete, mas se você desembuchar logo o que ele fez, vai me ajudar a entender. - ponderei. _O Pedrete é folgado. Ontem eu estava pilotando minha moto e ele entrou na minha frente. Quase me derrubou e ainda por cima ficou nervosinho e saiu xingando. É que eu sou de boa, senão ele ia ver só. _Entendi. Apenas não consigo aceitar que naquela cidadezinha minúscula onde moramos, eu não conheça esse indivíduo... _ O pedrete, pô! Pesdrete, pestrede, pestedre... _PEDESTRE, você quis dizer? _É isso que estou dizendo desde o começo. Você parece um burro. Meu amigo inclinou o assento ao máximo, virou para...

A goiabeira

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  Era uma manhã de outono típica no campo de obras. Havia chovido no dia anterior e as máquinas de terraplanagem disputavam espaço com pedras, buracos e desníveis entre o restante da vegetação desmatada, conduzidas furiosamente na lama por operadores motivados pela promessa de um dia de horas-extras e pelo efeito ainda pungente do café da manhã consumido momentos antes, com o firmamento como teto e os tambores de combustível como mesas. Enquanto eu recolhia os despojos do desjejum e me dirigia ao carro da empreiteira para voltar ao escritório, um súbito burburinho, que rapidamente se transformou em discussão paralisou os trabalhos, e os ânimos exaltados entre operadores e o encarregado da obra representavam mais que um convite a me envolver na confusão, mas uma convocação de fato. Chafurdando na lama com minhas botas de bico de aço, rapidamente cheguei no cerne do tumulto, que consistia num operador amuado de um trator de esteira com sua máquina parada na frente de uma solitária go...

Cavalheirismo cafajeste

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  Lá estava eu novamente na mesma mesa, da mesma padaria, com a mesma ausência de companhia de sempre, para mais uma vez, desperdiçar uma manhã de outono tomando café, comendo pães de queijo e conjecturando sobre novas maneiras de me autossabotar. Só que desta vez, o casal na mesa à frente impunha um obstáculo ao meu intento: uma calorosa discussão entremeada por cochichos agressivos e maneirismos mútuos, que eram disfarçados por falsas gentilezas quando flagrados por olhares errantes. Enquanto os querelantes se esmeravam em convencer o outro sobre algum tipo de razão afrontada que necessitava reconhecimento, desisti da minha postura autocêntrica e me permiti o pecadilho da curiosidade, apurando os ouvidos e prestando atenção ao que o casal cochichava. O assunto era uma desconfiança dela quanto a algum tipo de trabalho informal que o cara realizava e que segundo sua versão, era pretexto para encontros fortuitos com amantes. Ela vociferava entre cochichos: _ Trabalho o dia inteiro, ...

Noctívago

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Nas sombrias veredas da noite Ecoam sussuros de pretérita dor E o pavor enregela meu sangue Quando soa o azucrim do infesto No arvoredo busco refúgio  Entre caules, nas sebes intrincadas Que bruxuleam enquanto escafedo Como que saudando meu infortúnio  Olhos no escuro me fitam Fazendo o coração disparar Com os gritos de horror que ecoam E o perfume da morte no ar No véu rasgado da escuridão O nefasto se fez presente Não há refúgio nem salvação Apenas o fado que mereci Prostrado, suspiro e me rendo Tornando o medo em placidez Pois este mundo atro e insano Minha morada haverá de ser.