Cavalheirismo cafajeste

 

Lá estava eu novamente na mesma mesa, da mesma padaria, com a mesma ausência de companhia de sempre, para mais uma vez, desperdiçar uma manhã de outono tomando café, comendo pães de queijo e conjecturando sobre novas maneiras de me autossabotar.
Só que desta vez, o casal na mesa à frente impunha um obstáculo ao meu intento: uma calorosa discussão entremeada por cochichos agressivos e maneirismos mútuos, que eram disfarçados por falsas gentilezas quando flagrados por olhares errantes.
Enquanto os querelantes se esmeravam em convencer o outro sobre algum tipo de razão afrontada que necessitava reconhecimento, desisti da minha postura autocêntrica e me permiti o pecadilho da curiosidade, apurando os ouvidos e prestando atenção ao que o casal cochichava.
O assunto era uma desconfiança dela quanto a algum tipo de trabalho informal que o cara realizava e que segundo sua versão, era pretexto para encontros fortuitos com amantes.
Ela vociferava entre cochichos:
_ Trabalho o dia inteiro, a semana inteira, pago todas as despesas da casa, você diz que está sempre ocupado em contatos comerciais, mas está sempre liso, sem um tostão para ajudar nas despesas. Você acha que sou trouxa? Tem coisa aí...
Ao que ele retrucava:
_Você é uma ingrata paranoica! Quando me conheceu, foi numa visita comercial que te fiz, para oferecer rapadura fracionada para o supermercado em que você trabalhava, lembra? E pelo visto, fiz um bom trabalho, pois você autorizou a compra de dez caixas. Será que você ficou com amnésia depois de tanto tempo de convivência?
_Quem deve estar com amnésia é você, pois esqueceu que só autorizei a compra das suas rapaduras a primeira vez porque te achei atraente, a segunda por interesse e a terceira por pena. "Se enxerga", cara!
_Como vou esquecer de algo que você nunca me contou, mas estava escrito na sua cara de interesseira, criatura! Não à toa você perdeu a boquinha de gerente porque faliu o supermercado. Dá pra imaginar que tipo de relações comerciais você cultivava com os vendedores, que pensando bem agora, sempre foram todos do sexo masculino...
_ Bela tentativa de me desqualificar, ingrato! Realmente você foi uma péssima escolha, tanto como fornecedor, como parceiro de vida. Fosse eu menos humana e você menos pilantra e incompetente, certamente em vez de estar aqui aguentando seu ranço, eu estivesse agora sendo bem tratada por um homem de verdade, não um moleque aproveitador do seu quilate.
Eu tentava dissimular minha escuta indiscreta, mas era denunciado pelas constantes vezes em que esticava o pescoço na direção dos dois, exercitando meu julgamento por meio da escuta alcoviteira, porém, o ímpeto de autodestruição do casal o tornava alheio às impressões que causava nos presentes ao redor.
O vida-mansa, chispando em perdigotos, não cochichava mais. Bradava agora à sua vítima:
_"Moleque"? Moleque eu seria se tivesse te aguentado todo esse tempo, sem que você me sustentasse. Até garoto de programa cobra, "fia"! Mas já que está achando caro conviver comigo, guarde seu dinheiro para gastar com algum morto de fome que te aguente, pois não estou matando cachorro a grito não, sua mocreia!
Foi impossível não me indignar com aquilo, e enquanto eu me apoiava na mesa para interceder pela mulher afrontada, o aproveitador se levantou e se retirou praguejando, passando direto pelo caixa, como era de esperar.
A mulher elegantemente secou com o guardanapo de papel uma lágrima contida e permaneceu sentada, em silêncio, num misto de humilhação e alívio.
Finda a discussão, eu já não esticava o pescoço em direção à mesa da frente, mas fitava os olhos da mulher, que inesperadamente retribuiu e fez um gesto amplo com as mãos, seguido de uma expressão facial simpática, que denotava que havia superado o imbróglio.
Não me fiz de rogado.
Fui até sua mesa, pedi licença, assentei-me diante dela, apresentei-me e gargalhamos desbragadamente depois que abri um catálogo e disse:
_Prazer! Quer conhecer nossa linha de produtos culinários?



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