Playground
Com a xícara nas mãos e a cigarrilha nos lábios, peguei aleatoriamente um dos tomos da prateleira.
Conferi o título: Iluminuras.
Parecia o dia perfeito para expor Rimbaud ao crivo do meu mau humor matinal, ainda que me sentir um coelho entre campânulas rogando preces ao arco-íris estivesse bem aquém do meu contumaz azedume.
Minhas mãos trêmulas nunca foram boas cúmplices de minhas intenções e enquanto meus neurônios tentavam articular esforços para administrar em conjunto nicotina, cafeína e celulose, consegui incendiar o robe com a cigarrilha, para logo em seguida encharcá-lo de café.
Menos mal que o Rimbaud sobreviveu ileso ao abrigo da mão esquerda, enquanto a direita fazia-me o obséquio de lançar fora do corpo aquele tecido amarfalhado, queimado, ensopado e pleno do bodum característico de vestuário muito usado e pouco lavado.
Enquanto me vestia, lancei olhar àquele livro, um dos muitos que compro para ler depois (ainda que esse depois nunca chegue), e a capa consistia num fundo vermelho para a efígie daquele poeta maldito, de olhos inexpressivos, fitando o nada à esguelha, e ponderei que já havia visto esse olhar por muitas vezes, quando me fitei no espelho.
Enfrentei bravamente a fobia social que me tentava a encher o rabo de antidepressivos e voltar para a cama, e numa estocada heróica da chave na fechadura, abri a porta da minha masmorra para contemplar o sol que iluminava o arrabalde.
O primeiro banco disponível era o do playground da pracinha, e mesmo sob a ameaça de um daqueles vários mini-humanos birrentos e traquinas transformarem minha leitura num exercício de paciência e autocontrole, priorizei a menor distância e ali mesmo me acomodei e comecei a ler.
Enquanto no livro, um enxame de folhas douradas rodeavam a casa do general, um daqueles fedelhos, o menorzinho, parou em minha frente, olhando-me fixamente, com inocência e curiosidade.
Aparentemente, por ser o menor da turma, ele se cansou do bullying que sofria e não sei porque cargas d'água, considerou que eu fosse algum tipo de porto seguro.
Minhas células hepáticas de imediato recomendaram que eu fosse procurar sossego em outra freguesia, mas o resquício de um menino que ainda sobrevivia em meu íntimo, fez-me perguntar ao garoto solitário e curioso:
"Quer ouvir uma historinha?"
De pronto, a criança sentou-se no banco, ao meu lado e sem dizer nada, apoiou os cotovelos nos joelhos e iluminou meu espírito com um olhar agradecido, emoldurado por enormes bochechas, singradas pela expressão de um meio sorriso.
Então comecei a contar sobre meninos de luto que observavam vitrais gotejantes de uma antiga mansão, a lua ouvindo o uivo dos chacais num deserto de timo, flores de sonho tilintando nos confins da floresta, andarilhos da grande estrada entre os bosques dos anões...
Nossa conexão foi interrompida por uma senhora zangada, gritando do outro lado da rua, num misto de preocupação e desconfiança:
"Arturzinho, deixe esse senhor em paz e volte já pra casa!"
"Artur... O prenome do poeta! Tá de sacanagem..." - pensei, achando graça.
Eu o menino nos entreolhamos com uma ternura que eu pensava há muito morta em mim, enquanto ele dizia:
"Obrigado, moço. Não entendi nada, mas gostei da história."
Ato contínuo, saiu correndo na direção da senhora zangada, lépido e saltitante como um antilopezinho feliz, em nada parecendo aquela triste figurinha que me abordou momentos antes.
Fechei o livro, levantei-me, enchi os pulmões com o ar puro da manhã, cerrei os olhos e deixei que o calor e a luz do monarca dos céus aquecesse e iluminasse meu semblante, enquanto pus-me a caminhar lentamente no rumo de minha morada, pé ante pé, como que na intenção de prolongar aquele frescor de inocência em estado bruto que recebi como presente de uma alma pura.
E enquanto girava a maçaneta e atravessava a soleira, decidi que talvez a esperança renascida fosse um excelente substituto aos remédios, dali por diante.
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