A goiabeira

 
Era uma manhã de outono típica no campo de obras.
Havia chovido no dia anterior e as máquinas de terraplanagem disputavam espaço com pedras, buracos e desníveis entre o restante da vegetação desmatada, conduzidas furiosamente na lama por operadores motivados pela promessa de um dia de horas-extras e pelo efeito ainda pungente do café da manhã consumido momentos antes, com o firmamento como teto e os tambores de combustível como mesas.
Enquanto eu recolhia os despojos do desjejum e me dirigia ao carro da empreiteira para voltar ao escritório, um súbito burburinho, que rapidamente se transformou em discussão paralisou os trabalhos, e os ânimos exaltados entre operadores e o encarregado da obra representavam mais que um convite a me envolver na confusão, mas uma convocação de fato.
Chafurdando na lama com minhas botas de bico de aço, rapidamente cheguei no cerne do tumulto, que consistia num operador amuado de um trator de esteira com sua máquina parada na frente de uma solitária goiabeira, rodeado de colegas e do encarregado, que tentavam convencê-lo a fazer o trabalho que era esperado, no caso, avançar sobre a árvore, derrubá-la e liberar espaço para que as pás carregadeiras, a patrol e os rolos compactadores também pudessem fazer os seus serviços.
Em vista da muda paralisia diante das cobranças iniciais que subiam de tom no sentido de ofensas, resolvi intervir, pedindo que todos se afastassem, para que eu conversasse com "Nêgo Diesel", o operador do trator, e tentasse entender o que se passava com ele.
Convidei-o a sentar sobre uma pilha de cascalho próxima da árvore e ele assentiu, não sem antes tirar a chave da ignição, com expressão mista de alívio e desconfiança.
_O que aconteceu, meu amigo? Todos os dias você faz esse trabalho e nunca agiu como hoje. - comecei a conversa.
_Sabe o que é? - respondeu Nêgo Diesel - É que meses atrás, em Nova Iguaçu, eu estava em uma fila enorme de candidatos a contratação para uma obra como essa, cheguei bem cedo, o sol nem tinha aparecido ainda, e mesmo assim havia uma multidão de gente na minha frente.
_Prossiga, amigo - Demonstrei interesse.
_Pois então... - ele continuou - Eu estava desempregado havia meses, a situação estava complicada e quando saí de casa para procurar emprego, nem café havia tomado e o dinheiro que eu tinha no bolso só dava para a condução de volta.
_Entendi. Mas e a goiabeira? - inquiri.
_Quando já era quase noite, faltando umas cinco pessoas na minha frente para serem chamadas, um funcionário da empresa veio até nós e pediu para irmos embora, pois as vagas disponíveis já haviam sido preenchidas.
_Nossa! Que sacanagem! - solidarizei-me.
A partir daí, com lágrimas nos olhos, Nego Diesel prosseguiu:
_Até aquela hora, eu só havia tomado água de torneira e a fome era tanta que eu quase havia perdido os sentidos. Eu pensava em ir embora, desistir de me sujeitar àquela humilhação de tentar vender barato meu suor para que algum playboy enriquecesse com os frutos de meu trabalho, mas me lembrava de minha esposa, de meus filhos pequenos que só tinham a mim como guarida e tentei me convencer que havia alguma dignidade em permanecer firme até o fim.
_Sinto muito, amigo! - desta vez, eu também respondi com os olhos marejados.
_Então, galego (ele me chamava assim)... - Enquanto eu ia embora, sem saber em qual horário haveria condução para sair daquele fim de mundo, quase desfalecendo de fome, deparei-me com uma goiabeira repleta de frutos, no terreno baldio da esquina. Eram goiabas brancas, quase todas bichadas, mas com o paladar amortecido pela sem-cerimônia oriunda da necessidade, talvez tenha sido a mais deliciosa refeição que saboreei em toda minha vida.
Meus olhos marejados agora deixavam singrar lágrimas pelos vales da minha face, enquanto eu apenas ouvia a história.
Nego Diesel suspirou, tomou fôlego e prosseguiu:
_Quando enfim me fartei, elevei meus olhos para o firmamento e prometi a mim mesmo que a partir daí, jamais em toda minha existência eu derrubaria alguma goiabeira. E agora estou aqui, te contando isso. Você entende agora?
_Entendi, amigo. Deixa comigo! - respondi, enquanto me levantava e ia ao encontro do encarregado da obra, não sem antes trocar um olhar de cúmplice sensibilidade com operador do trator e afagar-lhe o ombro, antes de me retirar.
A conversa com o encarregado e os outros colegas não foi longa e acho que nem era mesmo necessário que fosse e logo a seguir, todos, máquinas e homens, se dirigiram a outro dos tantos outros locais do vasto campo de obras de construção da pequena central hidrelétrica e deram continuidade aos trabalhos.
Ainda hoje, quase catorze anos depois, quando passo pela Via Dutra e olho para os morros através do Rio Paraíba, ainda consigo divisar aquela pequena goiabeira ao longe, cercada de mato e de nada, como a me lembrar que a razão é humana, mas a providência é da mãe-natureza.
P.S.: Relato baseado em fatos, com a devida e merecida licença poética.



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