Noir
Erik Satie dedilhava Gymnopédie em algum piano num passado distante, e num capricho da tecnologia, os delicados acordes vinham do lado de fora da janela e preenchiam os espaços da sala escura e vazia, onde jazia minha carcaça ouvinte, ali, no chão, sobre uma esteira puída de vime, acompanhado de uma garrafa de vinho pérgola barato, consumida pela metade.
Recomeços são melancólicos, muito mais que alvissareiros, e no limiar entre a meia-idade e a velhice, esta verdade soava como dogma.
O caminhão da mudança só chegaria amanhã, e aquela esteira finíssima que estabelecia a fronteira entre meu corpo combalido e as tábuas corridas do assoalho dava sinais de que não forneceria nenhum conforto para a noite que se prometia insone.
A penumbra do quarto era profanada por chistes de neon fugidios, vindos do letreiro do hotel do outro lado da rua, que bruxuleavam em fractais no chão e nas paredes, dando àquele vazio de objetos e ânimo, uma psicodélica impressão de desalento.
À medida em que Satie era sucedido por Chopin, Gershwin, Phillip Glass e finalmente pelo burburinho cacofônico do centro da metrópole, o último gole de vinho decretou a falência das motivações que pudessem desviar o foco de meus pensamentos da solidão autoimposta, por conta de meu coração partido.
Num lapso próprio de bêbados, gargalhei alto, enquanto resmungava comigo mesmo: "se esse coração maldito não se partisse por amor, infartaria de ressentimento".
E fazendo jus à bipolaridade que acomete quem mergulha em garrafas, desabei em pranto, compensando em meia hora de choro, o deserto de anos sem ter derramado uma lágrima que fosse.
Recuperado o fôlego, acomodei-me deitado lateralmente sobre a esteira, puxando para as costas o casaco encardido, fiz dos braços travesseiro e resolvi aproveitar a prostração como sonífero.
E antes que as areias de Morfeu toldassem meus olhos e capturassem o que sobrava de meus sentidos despertos, de um beco da cidade indiferente ou de um delírio de embriaguez, a voz de Chet Baker flutuou pelo éter, quase que se deixando ver dançar, chegando a meus ouvidos, selando minha consciência, cantando suave e roucamente: "Almost blue... Almost blue..."
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