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Nonsense farmacológico

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Bom dia! Vocês têm Arovit? _Arovit não tem. _Sabe se tá pra vir? _"Tapravir" também não tem. Agradeci, ri e fui embora.

Son(h)o

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A consciência irrompeu indesejada, com o consequente entreabrir dos olhos, sem distinguir o que era torpor ou penumbra. A fome seria um bom pretexto para desafiar a prostração, mas avaliou o que teria pela frente ao decidir pôr-se em pé e agir em conformidade com sua condição de organismo vivo e pensante. Assear-se, providenciar seu alimento, atender semelhantes em demandas incontornáveis, ainda que irrelevantes, informar-se da deterioração progressiva e cotidiana da realidade a qual estava peremptoriamente inserido, a perspectiva de adicionar aos dias, compromissos desprovidos de propósito... Cerrou novamente os olhos, aninhou-se entre as cobertas e, na impossibilidade de não existir, devolveu sua consciência a Morfeu, na vã esperança de habitar seu reino pela eternidade.

2020, Capítulo Final

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Há dias, a família se reunia logo cedo na sala de visitas, para o briefing matinal. Janelas pregadas firmemente com tábuas? _OK. O cadeado e a corrente no portão da frente estão íntegros? _OK. As tramelas das portas da frente e dos fundos foram forçadas? _Não. Como está nosso estoque de água e comida? _Talvez dure mais dois dias. Quem ficará a postos, na próxima vigília da madrugada? Vovô se dispôs. Afinal de contas, dormitava praticamente o dia inteiro entre as refeições e à noite ficava desperto. Totó, subitamente começou a latir no quintal, trazendo medo e apreensão aos confinados. _Todos em silêncio! Se não nos notarem, irão embora. Perguntavam-se, desanimados e assustados, por quanto tempo ainda duraria esse tormento, essa clausura, esse risco de serem trucidados pelas criaturas que haviam tomado as ruas e atacavam selvagemente qualquer coisa que denunciasse inteligência e humanidade. Totó esgoelava lá fora e temiam que desta vez o portão s...

Hipocrisia

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Cobrarei tudo de ti e mesmo que me deres, acharei-me no direito de te dar o oposto do que quero para mim. Todo hipócrita é assim. Errei, mas a culpa de meu erro é sua, pois por mais que eu faça o que quero e tu também faças o que quero, o tudo que espero de ti e que não podes me dar será motivo para minha eterna insatisfação. Todo hipócrita é assim. Se falhei, e meu erro é pior do que o seu, de nada interessa a proporcionalidade: Estarei isento do crivo de sua crítica (e de minha autocrítica), pois meu erro é humano e o seu, mero pretexto para que eu legitime o que faço de errado. Todo hipócrita é assim... A dor que me causas por saber de minha inconsequência não será aliviada pela sofrimento que te causo, mas fazê-lo sofrer me trará a satisfação de não estar sozinho ao tragar toda a possibilidade de felicidade para o desespero de meu vazio interior. Todo hipócrita é assim... E eu também, às vezes.

Café

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Por entre a fresta da porta entreaberta passava um fio de luz matinal, assim como um convidativo aroma de café. A rotina, os compromissos e afazeres certamente não eram motivações dignas de convencê-la a desistir de continuar ali, prostrada, à espera de um nada que fizesse mover os ponteiros do relógio rumo a mais um despertar compulsório, mas o café... Eis um pretexto digno a pôr-se ereta e a contragosto, cumprir o roteiro de sua farsa cotidiana. Pensava em quantos outros dias vivera que não tivessem valido um gole de café forte e quente numa manhã fria de inverno. Lembrou-se de pessoas que transitavam por seus dias que não tivessem deixado mais marcas que uma gota de café caída em sua roupa. Evocou emoções instantâneas que não tivessem provocado sensações mais intensas que a dor de sorver, inadvertida e sofregamente, um gole de café fervente. Trouxe à sinestesia, o amargo de um café sem açúcar que vez ou outra, parecia mais doce que a realidade a seu redor. Envolta em re...

Homem de bem

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"Se pego o irresponsável que deixou isso aqui, eu arrebento", proferiu Jair, entre urros e impropérios, enquanto manquitolava, com expressão que denotava mais raiva do que dor. Acabara de tropeçar num cavalete que sinalizava pintura fresca de meio-fio, mas com um vício de origem imperdoável: interpunha-se entre Jair e seu percurso matinal, grave sacrilégio ao seu direito de ir e vir. Seguiu adiante, resmungando, pisando na tinta fresca, não sem antes jogar o cavalete no meio da rua. Afinal, sua dor e indignação necessitavam de um escarcéu à altura. Ao atravessar a rua, devidamente interditada com o cavalete derrubado, cruzou com Nelson, seu vizinho diabético, que retornava da padaria devidamente paramentado com máscara de proteção e luvas. Ao bom dia recebido, retribuiu com um acesso de tosse tão forçado quanto regado a perdigotos. "Sujeito asqueroso. Doentes como ele deveriam ser confinados em campos de concentração", remoeu Jair. Seguindo seu caminho,...

Fleugma

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Fleuma estática Bons augúrios Às seis horas da manhã Despertar consciente A realidade renasce Sorrisos pastéis Mãos que procuram Te acham e te perdem Não conhecem, só te sentem E te esquecem.

Catalepsia

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Um silêncio estranho, acompanhado de uma súbita escuridão preencheu-lhe os sentidos. E com surpreendente alívio, os pensamentos cessaram, tornando inviável o raciocínio. Frio, calor, já não distinguia a sensação que o ambiente teimava em impingir em sua tez. Com uma serenidade sorumbática, pouco se importou em discernir se estava ereto ou em decúbito. Afinal de contas, descobrira agora que o não-sentir podia ser tão compensador quanto o prazer. Imerso no nada em que se tornara, mal pôde sentir o zíper selando o invólucro negro que o continha. Afinal de contas, a partir daquele momento, o que ele era já não havia e o que se tornaria, não seria jamais.

Assimetria

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A gravação do som de sino ressoava pelo arrabalde. E desperto pelo marco sonoro, comecei a contar as badaladas eletrônicas: uma, duas... Contei seis, depois o silêncio. O zumbido em meu ouvido, companheiro constante de alguns anos, era a garantia de que estava de fato, acordado. Percebi que estava com o braço dormente. Rolei para um lado, deitando de costas, sentei-me, arrastando o corpo em direção à cabeceira, tentei mover o artelho amortecido e achei graça em constatar que só conseguia balançá-lo para lá e para cá, sem tato, sem propriocepção, sem coordenar movimentos. Pus-me em pé, o braço pendente, inerte, como se não fosse meu, mas um parasita que me sugasse o ombro. Pensei em meu corpo como fosse a vida, o braço morto como fosse a mim e percebi o quanto as analogias se prestavam ao ridículo de meu despertar. E pensei, como braço morto que era, o quanto de inútil se resumia minha existência. A parte de um todo plena de razão de existir, mas numa condição imprestável, ...

Singularidade

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Era um amarfanhado de sensações e sentimentos tão dúbios quanto intimidadores. E surpreendia que fosse visível, tanto quanto sentido. Um grifo físico, quase um sol de sujas iridescências, emanando incertezas, produzindo desalento. À proximidade, reagia sibilando, soando de forma a se perceber na pele, não nos tímpanos. Ao ser fitado cegava a visão, produzindo cintilantes silhuetas por detrás das pálpebras. Ao limiar do toque, deixava-se perpassar, causando na cútis de si envolta, a sensação de visco tornado sílica. Um halo emanava da quimera, esvanecendo a realidade ao redor, tornando tempo e espaço numa maciça massa ebúrnea que se estendia ao infinito. De tudo que outrora havia, restávamos nós: o grifo, eu e o inexorável. Num átimo de singularidade, amalgamamo-nos na não-existência, tornando ao que verdadeiramente somos. Num derradeiro rompante de consciência, achei que o torpor decorrente era o prelúdio de um sono eterno, mas estava enganado. Era apen...

Leviandade (Haicai II)

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Matou, não morreu Pensou, então lamentou Viver para quê?

Praça

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As folhas que chovem, enquanto percorro as alamedas do jardim O chilrear das aves, reclamando para si a atenção que teimo em conceder às memórias O alarido das crianças a reinarem num mundo de fantasia, o qual fui expulso há muito Os aromas que digladiam nos ares, pela primazia dos sentidos O mosaico irregular do passeio, que teima em me impor o jugo de seus fractais Tudo converge ao presídio de meu fastio: O labirinto intrincado das vivências onde um dia nos perdemos.

3-1= Infinito

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Na distração habitual de um passeio fortuito, meu olhar distraído foi capturado pela silhueta que me singrou o rumo, furtando minha atenção. Sabendo da iminência de minha perdição, ousei mirar os olhos que, ao arrepio da prudência, fitavam descaradamente os meus. Por um instante, ambos ignoramos o braço que enlaçava o gracioso cós da pretérita ninfa e que a retinha cativa ao corpanzil de ogras formas de seu indesejado acompanhante. Como fosse coreografia de um balé farsesco, nossa atenção convergiu temor e constrangimento às feições do golias ressurreto. Pensei e temi qual seria sua reação diante de tão confesso e imperdoável acinte? Empinando o nariz com altivez, estufei o peito numa profunda inspiração, prevendo a reação do orc ofendido. Enquanto eu decidia pela dissimulação ou pelas desculpas, o casal veio a mim. E antes que eu pudesse verbalizar um cumprimento, o Quasímodo, como num desajeitado passo de tango, abraçou sua Esmeralda e a impôs um torturante e roubado ...

Epitáfio

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Tentei paredes, amigos imaginários e os monólogos internos, mas no final das contas, só as estrelas me ouviram e eu as escutei de volta.

Ao porco, a pérola (Haicai I)

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Recebeu um poema. Comeu o papel. Defecou o sentimento.

Vetor inconteste

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"Olhe por onde anda!" Talvez o aviso, proferido em tom de ameaça, com um incompreensível resfolego por parte do emissor, tenha ocasionado menos prontidão que o gestual utilizado para evitar um eventual esbarro. Será que a necessidade de um espaço físico entre as pessoas, que garanta o distanciamento entre existências inconvenientes, justificaria tal desconforto? Porventura alguma vivência entre os protagonistas, de mim olvidada, pudesse significar a hostilidade, quem sabe? Até uma neurastenia patológica que gerasse ao portador uma indisposição para interações fortuitas, por mais involuntárias que fossem, daria sentido à misantropia fugaz. Num exercício de empatia e situando-me no contexto de uma conjuntura de pandemia, enxerguei-me não como um anteparo biológico que se interpusesse entre um cidadão e seu direito de ir e vir, mas como possível vetor de uma praga que, por distração, representasse ameaça à existência dos transeuntes. Findos estranhamento e consequen...

Amor em tempos de pandemia

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Quintana ou Victor Hugo decantariam a melancolia como a tristeza romantizada ou até uma espécie de contentamento em estar triste, mas o fato é que alguém estava sentindo algo que os clássicos vetustos talvez tivessem melhor definido que vivenciado. Já há duas semanas, o burburinho das repartições, o alarido dos comércios, a cacofonia dos sentimentos haviam cedido espaço em sua vida para um estupor inicial, que aos poucos tornava-se em tédio e agora tingia de sépia o mundo, as sensações, as vontades e os seres cada vez mais ausentes e distantes, essas imprevisíveis criaturas, as pessoas. Viver em quarentena deveria ser a antítese de morrer no habitat amplo, mas o óbito das possibilidades, a certeza do distanciamento e o inexorável do imponderável traziam à consciência um torpor que se insurgia contra a esperança, na medida de um mar que circunda um náufrago. No limbo de sua abulia, fomentava devaneios, que invariavelmente eram suplantados em urgência por dilemas relacionados à ...

Remorso

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O remorso, longe de algoz, contumaz parceiro Ora às turras com o orgulho ferido, em feéricos embates Às vezes élan de atitudes anti-desconstrutivas Mola-mestra da fleuma, combustível da timidez Ainda que simbionte, não coexiste em meu gozo. Do que não fiz, me arrependo Do que vivi, me contesto, Sabendo que de tudo O que sobra é amargo O que soçobra é a essência E a vida continua...(?) 

Contrastes

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Às anáguas de renda, um elevar de sobrecenho que denuncia o absurdo do paradoxo; Ao batom que como um bêbado torneia erraticamente a fonte de seus muxoxos, a incredulidade do inesperado; Ao burburinho da sala ao lado, o explicitar de minha privacidade de biombo; Advenha seu sumo, minha ninfa; que meu êxtase dionisíaco compense sua feérica desilusão.

Tempos modernos

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Ele ao volante, a cancela abaixada à frente, os cabelos úmidos, em cretina ignorância à vocalização da quantia que grasna a seu lado no interfone. O carro não sai do lugar, a cancela não levanta, ela abre a bolsa, tira a quantia e decreta: "Paga logo e vamos embora." A cancela se abre, o carro arranca, ele sorri de soslaio e pergunta a ela sem a fitar: "Foi bom prá você?" Ela joga fora o cigarro, olha para as ruas escuras e num resfolegar mau-humorado responde: "Ô..." 

Essência parnasiana

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No catre pétreo da semiconsciência, de onde advém a certeza que o etéreo habita onde o ser é pretenso, Onde o espelho não é capaz de refletir o que é real, mas apenas o tangível, Na eternidade do vislumbre insano que permite o cerrar de olhos, Há de reunir-se essência e elemento, fenecendo à míngua a matéria que os aprisiona.

Quadrado pretenso triângulo

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Breve ausência foi a dela. E envolto em lençóis e pernas femininas, o audaz adúltero estremeceu ao chiasco que lhe abateu ao súbito entreabrir da porta.  Sua cúmplice cumulou-se sob a fronha e seu cobertor de orelhas, mais aturdida que envergonhada. E o Don Juan eventual, num súbito lapso de razão distorcida, percebeu a facécia social e a desgraça pessoal que lhe acometeria. Mas qual seu espanto, ao fitar a "vítima" e perceber um silêncio constrangido que nada denotava raiva e contrariedade, mas sim uma expressão inenarrável, algo análogo ao desespero. Lá estava ela de pé, ocludindo uma figura masculina que se abaixava em seu dorso, mas se denunciava pelas fortes mãos que surpassavam-lhe o cós, apertando-a firmemente a seu corpo. O silêncio desde o início imperou e por segundos infinitos congelou aquele quarto. A porta se fechou.  Nada mais foi como antes.

Quase fim

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"Olhe em meus olhos e diga o que lhe incomoda." Aquilo era demais.  Aturdido pela presença daquela que era sua idealização de perfeição, o convite parecia deveras desafiador. Ele estaca, como que tomando forças para proferir as palavras que talvez mudassem sua vida, levanta aos poucos seu semblante e ao finalmente encará-la, profere a fatídica sentença:  "Nada, não. Deixa para lá." Ela dá de ombros e continua a escrever.  Ele imerge em seus afazeres, evanescendo de sua mente o azo atroz, não sem antes tranquilizar-se por evitar tornar real e comum uma quimera tão linda pela sua voluntária e definitiva impossibilidade. 

Sentimento

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O mundo além dos olhos é outro e escondo em meus recônditos a imagem de meu tesouro, pois ele mesmo vaga por aí. Ao breve eclipse do olhar, quando nossas janelas estão inacessíveis à realidade que insiste em espreitar, ávido pelo reconhecimento que insisto em evitar, viceja o sentimento qual pechado como augúrio, ao piscar é natimorto.  Vingue o que sinto, pois nele não me incumbo e vivo pela consequência, pois nela existo como serei lembrado.