2020, Capítulo Final

Há dias, a família se reunia logo cedo na sala de visitas, para o briefing matinal.
Janelas pregadas firmemente com tábuas?
_OK.
O cadeado e a corrente no portão da frente estão íntegros?
_OK.
As tramelas das portas da frente e dos fundos foram forçadas?
_Não.
Como está nosso estoque de água e comida?
_Talvez dure mais dois dias.
Quem ficará a postos, na próxima vigília da madrugada?
Vovô se dispôs. Afinal de contas, dormitava praticamente o dia inteiro entre as refeições e à noite ficava desperto.
Totó, subitamente começou a latir no quintal, trazendo medo e apreensão aos confinados.
_Todos em silêncio! Se não nos notarem, irão embora.
Perguntavam-se, desanimados e assustados, por quanto tempo ainda duraria esse tormento, essa clausura, esse risco de serem trucidados pelas criaturas que haviam tomado as ruas e atacavam selvagemente qualquer coisa que denunciasse inteligência e humanidade.
Totó esgoelava lá fora e temiam que desta vez o portão sucumbisse e os deixasse à mercê daqueles monstros.
A família se trancou reunida no banheiro e calçou a porta com a sapateira. Tinham decidido que ali seria seu derradeiro bunker, se assim fosse necessário.
Somente o irmão mais velho ficou na sala, disposto a sacrificar-se pela sobrevivência da família ou, quem sabe, com um pouco de sorte, conseguir manter as criaturas no lado de fora.
A corrente partiu, Totó silenciou depois de um baque surdo e um ganido torturante.
Passos céleres e descompassados no corredor produziam no solo trepidação e barulho análogos a uma metralhadora. Eles estavam chegando!
Nosso herói olhou por uma fresta entre as tábuas da janela, vislumbrou a massa de zumbis trajados em farrapos auriverdes se aproximando, balbuciando em uníssono: AI-5... Mito...
Destemidamente abriu a porta, agarrou com força o exemplar da Constituição de 1988 e atirou-se com fúria contra a turba, certo que sua imolação não seria em vão.
No banheiro, seus familiares ainda conseguiram ouvir seu derradeiro brado, antes de tombar, massacrado pela massa descerebrada:
DEMOCRACIA!

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