Fanatismo

Às dezessete horas em ponto, Jair ligou a TV, num misto de expectativa e apreensão, para assistir o tal vídeo da reunião presidencial.
"Mãe, vem ver o mito falar. Traga o tremoço. Pode colocar no mesmo prato em que almocei e larguei na mesa da cozinha."
A vinheta de notícia urgente piscou na telinha. 
"Mãe! Cadê a cerveja?"
E a idosa, no exercício da paciência de Jó: "Você pediu tremoço, Jair".
"Pô, mãe! Quem come tremoço sem cerveja? Acho que você ficou gagá!"
O som de chinelos se arrastando deu lugar ao ruído da porta da geladeira se abrindo, seguido do característico clique de garrafa sendo aberta.
Jair tornou sua atenção à TV. Um ministro vociferava contra índios e ciganos e desfiava um rosário de palavrões. 
"Cara bom! Manda esses animais pra Venezuela. Índio nem é gente!"
A velha chegou com a cerveja, ruborizando com o palavreado chulo que vinha da TV.
"Que coisa horrorosa, Jairzinho! Muda de canal. Seu pai não gostava de palavrões dentro de casa!"
"Cala a boca, velha! Quem fala palavrões é macho, manda na lata! Que nem eu".
Àquela altura, outro ministro sugeria aproveitar que a atenção da mídia e das pessoas estava nas mortes em virtude da pandemia e que o governo aproveitasse para aprovar medidas que favorecessem o desmatamento e a impunidade de invasores de terras.
Jair vibrou, quase caindo do colo da mãe, que naquele momento, lhe tirava as caspas do cabelo.
"É isso aí! Vamos cortar as árvores, fazer carvão, criar gado e garantir a churrascada para o povo!"
Naquele momento, o presidente vociferava algo a ver com liberdade e a intenção dos comunistas em quererem roubar-lhe as hemorróidas.
Jair se revoltou.
"Agora esses vermelhos foram longe demais! Ninguém respeita mais nada neste país. Nossas hemorróidas jamais serão vermelhas!"
A idosa ponderou:
"Filhote, bem que podiam roubar a sua, não é mesmo? Você sofre tanto com ela..."
"Mãe, aí não! Tá brincando com coisa séria?" - resmungou, Jair, contrariado.
O presidente parecia fora de controle. Chamava governadores de "bostas", dizia que seu irmão era perseguido por ir ao açougue sem máscara de proteção, mas era mentira, contava que se não ouvisse o que filhos diziam atrás da porta, depois não poderia reclamar de gravidez ou uso de drogas, ameaçou demitir o ministro que se recusava a usar a Polícia Federal para defender parentes e amigos, coagiu sua equipe a se empenhar em armar a população para, segundo o chefe supremo, impedir uma ditadura de prefeitos e governadores que impedisse a implantação de sua própria ditadura.
Jair estava em êxtase.
Desligou a TV, interrompeu o cochilo da genitora e expressou em loas seu fascínio:
"Velha, bem que o pastor me disse. Esse homem é um ungido, é que nem o Rei Davi, que mandava gente morrer nas batalhas pra roubar suas esposas, sua autoridade é concedida pelo divino e quem é contra ele é satanista, com saudade do petê" - urrava o fanático, entre perdigotos e cerrar de punhos.
"Jair, quer mais tremoço?" - perguntou a idosa, sem compreender, nem se impressionar com tamanho entusiasmo do rebento.
"Tremoço não, mãe. Quero que 2022 chegue logo pr'eu votar nesse homem de novo."

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