Boemia
O que parecia ser as batidas do coração o despertou.
A vibração sob seus pés o deixou confuso.
Enquanto levantava a cabeça outrora aninhada sobre seus braços prostrados sobre a mesa, batidas do coração e vibração sob os pés tornaram-se um torturante som de bate-estaca, preenchendo o ambiente e os ouvidos.
Ousou abrir os olhos, num hercúleo esforço, para voltar a ser cegado, não por pálpebras, mas pelo neon e pelos flashes estroboscópicos que alucinavam os donos dos corpos dançantes que tomavam o salão.
Onde estavam seus amigos ou melhor: onde ele estava que não estavam ali seus amigos?
Suas companhias à mesa eram garrafas de uísque vazias, copos sujos e cinzeiros cheios. Faltava ali inclusive a sobriedade que havia se afogado num daqueles copos engordurados.
Respirou fundo, enquanto, entre estalos no pescoço e nas costas, punha-se de pé, aspirando sofregamente o oxigênio saturado de alcatrão.
Ninguém notou enquanto se esgueirou pelos cantos, apoiando sempre uma das mãos nas paredes, procurando um ralo que escoasse vossa excrescência de volta ao fluxo da consciência, de preferência, longe dali.
Quando passou pelo segurança do corredor, rumo à saída, recebeu dele um olhar zombeteiro, que trazia em si desprezo e alívio por ver se escafedendo um problema em potencial.
A lufada de ar fresco do exterior trouxe a si o ânimo que nas horas passadas dera vez ao torpor da embriaguez, qual hálito da amada ao conceder-lhe o primeiro beijo.
Resolveu que iria aguardar o alvorecer ou o retorno da sobriedade, o que viesse primeiro, para decidir o que fazer daquele restolho de madrugada.
Enquanto elucubrava sobre seus infortúnios, deu a perambular pelo decadente Centro, torcendo que horas tornassem em segundos e todo aquele desalento boêmio lhe inspirasse o ânimo.
A fauna urbana se descortinava a cada esquina dobrada, os contrastes entre as sombras dos prédios antigos e os reflexos dos edifícios recobertos de blindex se sucediam.
Cães, putas, travestis, burgueses singrando avenidas em coches metálicos, a aragem encanada das alamedas desafiando seu arbítrio, na contramão de seu rumo.
O sarro amargava sua boca, a ofuscante halogenia dos postes criava padrões bruxuleantes ao seu redor, sentia que caminhar era um desperdício de energia se não soubesse para onde estava indo.
Parou então na praça, onde jazia a seu lado um convidativo banco de cimento, que se não fosse pelas folhas secas orvalhadas que o salpicavam, poderia ser considerado limpo.
Ali se prostrou.
De novo sua consciência se esvaía e decidiu que não resistiria ao estupor.
Um dos coches burgueses passava em frente, lento, com vidros abertos e som alto.
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