Simbiose

Finalmente ela veio.

Aquele cabelo comprido, preso em coque atrás da cabeça, os indefectíveis óculos vintage pontiagudos dos lados, aquele batom vermelho delineando sua boca de forma a torná-la um muxoxo, o vestido justo na medida de quem dedicou parte da existência a caber nele, os modos felinos que não evitavam que as agulhas negras de suas meias patas negras marcassem sua marcha em direção à mesa com ritmados e sonoros passos.

Enquanto ela se sentava, com a sempiterna atitude ofendida que usava a título de charme, cumprimentei-a com um "demorou, heim?", devidamente respondido com a saudação "esperou porque quis".

Após um entreolhar mútuo ofendido tanto quanto simulado, ela estendeu-lhe o rosto, sendo retribuído com um leve roçar de lábios entre a boca e o queixo, que se contivesse volúpia, bem poderia ser chamado de beijo.

Enquanto ele sorvia seu choconhaque, ela pousou sua carteira de mão sobre a mesa e enquanto se olhava no espelhinho para garantir que o cumprimento não houvesse danificado seu reboco, perguntou:

"Fez algo além de beber hoje?".

Enquanto as palavras chegavam a seu ouvido, sua sede de algo quente que o entorpecesse crescia e deitando a xícara ao pires, respondeu: 

"Bem que gostaria, mas a via sacra em seu rosário de credores custou-me tempo e possibilidades de lazer".

Guardando o espelhinho na carteira enquanto posava a uma selfie, a lady retrucou:

"Pois deveria estar feliz de me encontrar, pois outros fizeram por mim o mesmo que você e tomaram choconhaque sozinhos depois".

E ele:

"Sabe por que te obsequiei minha consideração cronológica e financeira, querida?" 

E continuou:

"Te conheço mais que a mim. Sei que quando você se despe de roupas, adereços e afetações, seus olhos brilham mais que seus diamantes falsos nos dedos e ali percebo que não sou explorado por você. Sou na verdade, aquele que você escolheu para, de mim, receber favores. E sabe por que? Depois de si mesma, do seu poodle, da sua mãe e do seu sedan 2007, é a mim que você ama".

Desistindo da selfie e se rendendo ao sentimento posto em voz, ela respondeu, enquanto levantava-se, puxando-o pela mão:

"Te amo". Vamos à joalheria? Vai fechar daqui a pouco".