Assaz fortuito

Assaz fortuito 

Era a primeira alvorada depois do inverno enregelante das plagas mantiqueireanas, mas o tímido sol era apenas um halo oculto pela grossa neblina característica da época, dando ares de madrugada à manhã que enfrentava o breu.
Na falta de transeuntes a quem cumprimentar, ou conhecidos com quem compartilhar as sacais impressões sobre o clima, ou se inteirar sobre o último adultério do prefeito, ou quem sabe receber algum pedido de empréstimo dos fodidos que nos rodeiam, desta vez era somente o ar gélido que o acompanhava, com tal cumplicidade que o vento soprava no rumo de seu destino, onde certamente essa quase solidão daria vez a madrugadores defendendo seus lugares na concorrida fila do pão.
Uma recorrente tontura o incomodava e desta vez um pouco mais que o normal, pois sob aquele espesso nevoeiro, divisar caminho entre pedras, buracos e ressaltos no meio-fio começava a dar ares de aventura àquele corriqueiro deslocamento.
O pior veio a acontecer. O desequilíbrio, um dos pés preso a um buraco no chão, a ausência de anteparo para evitar-lhe a queda e a súbita sensação própria daquilo que não se sustenta e empreende voo rumo aos caprichos da gravidade.
Levou as mãos ao rosto e crispou os olhos como reflexo de autodefesa, tentando antever as consequências do esborracho vindouro. Entremeou um sorriso à preocupação, pensando que se fosse necessário um tratamento dentário, isso lhe custaria os olhos da cara. "Piada besta", pensou, enquanto desarmava o meio sorriso e começava a achar que a queda estava demorando demais a findar. Não que estivesse ansioso para constatar o estrago que o paralelepípedo causaria em sua carcaça decrépita, mas que era estranho esse lapso anormal, não havia dúvida.
E se desmaiasse ali no meio da rua? Algum puto poderia lhe roubar os trocados do pão e não socorrê-lo... Ou então chamaria a ambulância e o internariam em observação, fazendo com que perdesse a hora de entrar no trabalho.
Subitamente, o lusco fusco toldou-se em escuridão absoluta, as carícias gélidas da aragem pós-invernal cessaram em sua tez e os murmúrios da natureza ao redor findaram em silêncio.
E nada mais percebeu, fez ou foi, nosso caminhante matinal.
Corre amiúde que a última lembrança que todos ainda guardam daquele pobre diabo foi a de uma mosca que prescrustava um de seus olhos verdes embaçados nas órbitas entreabertas, enquanto seus despojos eram desleixadamente jogados no rabecão, para o desenlace derradeiro de sua medíocre existência.

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