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Mostrando postagens de 2025

Onírico promenade

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O silêncio ao redor contrastava com o burburinho incessante em minha mente. E na solidão própria dos amaldiçoados com a eterna vigília, o que faltava em vivências, sobrava em devaneios: pessoas, situações, histórias, sucessos, fracassos, arrependimentos, promessas não cumpridas, indo e vindo em memórias do que já aconteceu, nunca houve e o que poderia ter sido. Contemplar a escuridão ao relento da vastidão do descampado me assustava, não na perspectiva de que algo pudesse me acontecer, mas justamente o oposto: que o vazio atro e inerte persistisse, tornando em limbo uma realidade outrora plena de cores, sons, presenças e interações. A relva orvalhada sob meus pés descalços garantia que o torpor não sequestrasse de vez minha consciência e na busca de inspiração, tornei os olhos ao firmamento, onde nuvens se moviam ao sabor dos alísios, encobrindo e descortinando uma miríade de estrelas errantes. Prostrei-me ao solo, em decúbito, admirando o embate entre nuvens e estrelas pela primazia n...

Pra tudo acabar na quarta-feira

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Que madrugada de terça-feira gorda foi aquela?! Na verdade, continuava sendo, pois para os demais foliões que ainda persistiam no frenesi hedonista, os festejos de Momo só se encerrariam ao último percutir da baqueta no bumbo ou então na exaustão definitiva de seus corpos fantasiados, pintados, semidesnudos e cintilantes de glitter e suor. Não era este o meu caso. Já eram quase três da manhã e às seis eu pegaria no batente, portanto pus-me no rumo de casa, certo que uma ducha e algumas horas de sono pudessem despertar em meu íntimo a motivação de encarar um plantão que duraria doze voltas completas no relógio. Nas ruas, a fauna festiva pulava atrás dos carros de som, urrando em uníssono o bordão próprio dos estertores carnavalescos que atravessava eras, sem contudo perder seu significado de fim de festa: "é hoje só, é hoje só..." Subitamente, duas delicadas, porém vigorosas mãos me seguraram os quadris por trás, empurrando-me à frente num irresistível impulso, fazendo com que...

Lapso Insone

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E lá estava eu novamente... Outra madrugada ao relento, o corpo sonado estendido na rede, mas os sentidos aguçadíssimos, ávidos pelos sutis estímulos proporcionados pela penumbra da lua minguante. O quase nada a se ouvir ao redor disputava a atenção com o rebuliço que ribombava em minha mente, tornando a experiência de estar desperto em uma agonia sensorial digna de um surto esquizofrênico. Um pássaro, talvez uma coruja, piava num compasso arrastado e repetitivo, dando a impressão de dizer, de forma zombeteira: "durma, duuurmaaa". Meus pensamentos, à revelia de minha intenção, rogavam imprecações à ave agourenta, como que sua expressão natural fosse na verdade, uma provocação a este ser insone. Diálogos internos se sucediam em imagens mentais aceleradas, evocando longínquos episódios da vida, invocando gente que nem mais existia, à revelia de minha vontade, que era apenas não enxergar mais nada enquanto os olhos estivessem fechados. "Que droga" - pensei, vocalizando...

Sobre despedidas e bolinhas de gude

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Joãozinho veio ao mundo sem saber o porquê, em pouco tempo já engatinhava e balbuciava afeto com estridentes monossílabos e quando se deu conta, já ficava em pé e ensaiava corridinhas curtas com a desenvoltura de um potrinho em seu primeiro galope. Alguns meses se passaram, sua curiosidade o movia na direção de seus interesses e tudo era descoberta, encanto e estranhamento, à medida em que seus olhinhos faiscantes, de um verde acinzentado, perscrutavam seu derredor: uma folha de árvore caindo em rodopio até pousar nas plácidas águas do laguinho, as gotas de chuva escorrendo nos vidros da janela da cozinha, o arrulhar das pombas que se aninhavam no forro do telhado sempre que o sino da igreja anunciava as seis da tarde, o cheiro de sabão de coco que o travesseiro exalava, todas as vezes em que sua mãe trocava a roupa de cama...  Mas o clímax dos dias sempre eram as partidas de bolas de gude jogadas com seu priminho Zequinha, onde o objetivo de ambos era conquistar todo espólio de bo...

Emoções Químicas

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Não foi o despertador, nem a tênue claridade da tenra manhã, tampouco o arrulhar do alvorecer das aves do arrabalde que me acordaram às seis horas da manhã neste domingo. O retorno ao ânimo vivente se dera como que por uma espécie de obrigação cotidiana, uma imposição da repetição dos dias, algo próprio daquilo que é fatídico, involuntário, compulsório e premente. A rotina sucederia o torpor que se esvaía à medida em que os raios de sol invadiam o quarto pelas frestas da janela de madeira empenada: necessidades fisiológicas, asseio, desjejum, comprimidos, estupefaciência psicotrópica, prostração, diálogos internos e o embate diário entre a imposição de ressignificar a existência ante o acachapante e irresistível sentimento de desesperança e fatalismo. Uma estranha sensação de despersonalização me afligia, dando a nítida impressão de que mente e corpo não se fundiam em mim, mas eram entidades independentes, que numa simbiose estranha, possuíam arbítrio à revelia de minha vontade. Estáva...

Lágrimas pluviais

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A garoa se fez tempestade enquanto eu amassava as nádegas no banco da parada de ônibus por um quarto de hora, observando as gotículas bruxuleantes ao sabor do vento engrossarem em grossos pingos, para depois percutirem em granizo na cobertura do abrigo, no ritmo de uma bateria de escola de samba acelerada e descompassada.  A ansiedade crônica que me acometia há tempos fazia o coração disparar e por um breve momento, achei que meus batimentos cardíacos competiam com a percussão do granizo pela primazia do ritmo mais descompassado, acelerado e bizarro que fosse possível.  Um ônibus surgiu na esquina, acelerado, com os limpadores ligados num vai e vem desordenado e um dos faróis queimado, sem aparentar que seu condutor tivesse a intenção de fazer a parada, ainda que eu me levantasse parcialmente, acenando timidamente com um dos dedos da mão apontando para cima. O coletivo confirmou minhas expectativas pessimistas, passando direto em alta velocidade e ignorando meu sinal, não sem...

Serenus Finis

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Após um lapso indeterminado, de horas, minutos ou segundos, sabe-se lá, abri os olhos. Uma nesga de muro verde obstruía a visão de um amplo céu carrancudo, pleno de cúmulos, nimbus e estratos, sem espaço ao menos para um azulzinho sequer de firmamento. Meus membros formigavam, enquanto a frialdade do piso cerâmico amortecia a pele de minhas costas nuas, contribuindo para que o entorpecimento desse aos poucos, protagonismo a um claudicante retorno à consciência.  O único som que se ouvia era o ruído surdo e intermitente de motores dos carros que iam e vinham nas ruas ao largo. Pensei em me levantar, mas uma acachapante abulia me mantinha estático, impedindo-me de saber se o que me mantinha cataléptico era só apatia ou algum tipo de paralisia incapacitante. O torpor do recém-despertar deu lugar ao temor do desamparo e se tornou em pavor quando tentei gritar por ajuda mas não me lembrei de nenhum nome e o som que saiu de minha garganta foi um urro gutural e inaudível.  O formiga...

Sonhos juvenis

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Era janeiro de 1986, eu estava alojado no Parque Santos Dumont, em São José dos Campos, junto com outros jovens alunos e alunas do curso de Educação Física, todos belos e malditos, com um passado tenro e um futuro que urgia célere, mas que não nos amedrontava, pois éramos detentores de uma esperança pueril de que tudo daria certo para todos e a vida era para ser vivida, não compreendida. No lapso de um pós-crepúsculo às margens do "laguinho", num raro silêncio entre risos, tilintar de copos e efusividades extravagantes próprias do entusiasmo etílico-juvenil, subitamente nos calamos, inebriados pelo som que ressoava do único luxo que dispúnhamos naquele alojamento improvisado, um nostálgico toca-fitas: Era a música "Dreamer", do Supertramp, que mais tarde, ao traduzi-la, descobri o tanto que havia em comum com o momento que vivíamos e sobre um pouco do que ainda iríamos sentir décadas depois, ao rememorarmos o que fomos em paradoxo ao que nos transformamos. "......