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Alienação

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Durante uma visita recebida, eu e Jair assistíamos a um telejornal, quando as imagens mostraram a chegada de tonéis de combustível para permitir o funcionamento das incubadoras da UTI neonatal de um hospital sob cerco em Gaza. O indivíduo prontamente se indignou, espumando numa profusão de perdigotos: _Desde quando as incubadoras de hospital funcionam com combustível? Isso aí é para os terroristas fazerem bombas para jogar nos soldados israelenses. Palestinos malditos! Israel tem mais é que bombardear mesmo! Respirei fundo e respondi pausadamente, de maneira didática, tirando paciência não sei de onde: _Jair, as incubadoras da UTI neonatal de lá funcionam a eletricidade, que é fornecida por geradores alimentados por combustível, sabia?  Enquanto eu explicava o óbvio ao fanático ignorante, as imagens começaram a mostrar dezenas de recém-nascidos acomodados em colchões no hospital quase em ruínas, à espera do retorno do funcionamento dos geradores, para finalmente serem reconduzidos ...

Fratricídio (Haicai 4)

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Olhou pra cima Bombas e fogo no céu O amor morreu

Indiferença

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O novelo da vida se desfia em nós Que prendem na garganta o grito da revolta Como êmbolo contido, prestes a explodir Sob a placidez aparente da repulsa contida. A indiferença perscruta sob afetos forçados Naturalizando absurdos, negando a empatia Desviando o olhar, imerso em fúteis razões  Transbordando em fel, crispando mãos atadas. O amor recusado, em ressentimento se torna E a afeição fenece, em desdém e indiferença Quando o egoísmo se impõe, galhardo e vil Impondo às gentes o jugo da não-existência. Eles sempre estiveram ali, você que não os viu E quando neles tropeçou, a cegueira se desfez em asco Quebrando pontes, no afã de cavar abismos Para evitar o desconforto de se ver no outro. O pão que falta, o teto de nuvens, o chão duro como abrigo Ou a riqueza acumulada gerando desperdício Nada disso nos define como maus ou virtuosos Pois é em tudo que deixaremos de ser que o porvir nos igualará.

Sinestesia

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Nas contradições dos meus sentidos embargados Cores vibram, em trilhas de odores táteis Num turbilhão de sensações em vórtex urdidas, Onde o claro-escuro se rende ao psicodélico. Sob o véu da insanidade se oculta a razão, Agonizando em deleite na fronteira da percepção Alucinando em cores, ouvindo sabores Num conluio mágico entre  prazer e emoção. Pelos se eriçam ao tinir do acorde de seu perfume Paisagens se sucedem ao léu do sabor de sua língua Sua tez secreta o cheiro de sua súplica Enquanto perscruto, faminto, o mel de seus recônditos. Sob o ópio dos sentidos, embalamos danças trôpegas, Em idas e vindas, trazendo volúpia e levando êxtase Percorrendo universos rumo ao éden Transcendendo o real, onde o místico viceja. Entregue ao deleite, o real capitula ao onírico  Transmutando em divino a banalidade do fastio Até que cesse a sinestesia, fruto do encanto Para então se tornar amor, muito mais do que lembrança.

Entredentes

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_Maldito mormaço! - rosnou entredentes o sempiterno resmungão, aludindo à tórrida umidade atmosférica a primazia por seus percalços. A ventoinha no painel vibrava inútil, fazendo circular ar-quente no interior do Escort, lançando partículas de poeira nos sulcos faciais do enfadado caixeiro-viajante, que ao se misturar com o suor em profusão de sua testa, desfiava em filetes pelo pescoço, emporcalhando o colarinho branco desabotoado, circundado por uma inacreditável e frouxa gravata amarela com estampas do Bob Esponja. Não bastassem o insuportável calor, o ronco da ventoinha, o cansaço do fim de tarde, um porta-malas repleto de porta-retratos encalhados e a carteira vazia, agora se deparava com o trânsito parado à sua frente, impedindo que acessasse a via principal, no rumo de seu ainda distante recôndito familiar, onde sua mãe aguardava sua chegada para assistirem juntos à novela das sete e ao culto televisivo subsequente, rotina a qual se dedicavam literal e religiosamente. O veículo ...

Estiagem voluntária

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Levantei-me, sedento. E minhas papilas gustativas ressecadas talvez fossem mais responsáveis pelo inopino de meu elevar que meus próprios quadríceps. Munido de meu copo descartável, que por um zelo sustentável já guardava há semanas, adentrei o recinto onde colegas barnabés teciam superficialidades enquanto se esmeravam em cumprir bovinamente atribuições que não lhes competiam por lei nenhuma, mas ainda assim levavam a cabo por uma subserviência estranha ante a estrutura, que mais de três décadas depois, ainda me causava estupor em constatar. Pressionei a torneira do bebedouro inutilmente, pois até o Deserto do Saara possuía mais H²O que o galão posicionado no funil. Inquiri aos colegas se já haviam telefonado ao fornecedor para o devido reabastecimento e fui informado que "fulana de tal", que se encontrava no recinto era a responsável e faria o contato. Menos mal. Afinal de contas havia o bebedouro coletivo no pátio e a satisfação de minha ânsia sedenta era mais questão de m...

Catarse episódica

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A tarde do meio de semana com feriado prolongado era metodicamente desperdiçada com afazeres em série pelo proletariado, como se a expectativa pelas diversas perspectivas do ócio iminente contaminasse tudo com a pressa de terminar logo o que era feito sem o compromisso do esmero na execução, conquanto isso não acelerasse marcha dos ponteiros do relógio de ponto. A atmosfera de uma efeméride nacional de cunho religioso que ocorreria em uma quinta-feira não poupava quaisquer vivalmas. Adeptos do credo em destaque programavam excursões ao centro de devoção na data da comemoração, organizando-se em grandes grupos ou em família, esmerando-se no planejamento, no qual obrigatoriamente constavam lanches, objetos de devoção e é claro, uma merreca para gastar com bugigangas no aflorado comércio que desde milênios exerce simbiose com a fé das multidões. Peregrinos aos milhares arrastavam fatigadas carcaças por dezenas e até centenas de quilômetros, por dias e até semanas nas rodovias lindeiras, d...

O pavão

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Ultimamente meus momentos de folga são tão escassos quanto as esparsas recorrências de amigos das antigas procurando-me para um rolê regado a bate-papo. O que não me pareceu óbvio de início era uma premente necessidade de autoafirmação desse meu parceiro de tempos idos, uma excrescência de carência afetiva que para um quase quinquagenário, soava meio ridícula. Acomodei-me naquele carro de empresa e quase me entorpeci com aquele olor carregado, próprio de fragrâncias espalhadas pelo corpo com o descuido de se exceder em muito a parcimônia. Enquanto tentava ficar sóbrio, num épico embate olfativo com o olorante bodum, ouvia relatos de viagens à Disneyworld, contemplações em consórcios, presentes caros dados a concubinas e uma estranha lealdade canina a quem lhe oprimia mas era "digno de sua consideração" por recompensar-lhe com a oportunidade de ser sempre um escroto exposto às carícias figurativas e quem sabe, até físicas, deste inacreditável puxa-sacos típico. A tentativa de ...

En passant

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Era início de noite de um fim de mês de agosto fustigado pelo alísio hálito de uma atmosfera taciturna, que concedia ao clima a primazia de enregelar minhas orelhas, numa conveniente distração ao acachapante sentimento de marasmo que insistia em me acompanhar todas as vezes em que eu subia a ladeira da viela do subúrbio, após outra segunda-feira de labuta. O sereno bailava errante, fazendo-se de prisma quando revelado pelo vapor de mercúrio das luminárias que ladeavam a escadaria, permitindo um lapso contemplativo enquanto eu contava mais uma vez os degraus, um por um, no rumo do refúgio que me acolheria na característica modorra do subúrbio. Encostados na parede, junto à folha dupla de flandres rebitada que fazia as vezes de porta de entrada da minha morada, lá estavam de novo os adolescentes da periferia, imberbes, belos, irresponsáveis, autoconfiantes na medida do acinte, mas que se postos sob o jugo do futuro imponderável, emanavam a fragilidade daqueles que se permitem sorrir enqu...

Presságio (Haicai 3)

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Vi augúrios Auspícios vindouros Findar agouros

Rubro remorso

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Otávio tinha tudo o que queria na vida.  Era rico, popular, relativamente jovem, saudável, bem apessoado, tinha uma bela esposa chamada Serena, e dois filhos maravilhosos.  Mas a Otávio, a bonança era insuficiente para preencher seu vazio existencial e volta e meia, pensamentos libertinos lhe assaltavam a mente. E nessas horas, geralmente quando se privava dos afazeres e ficava sozinho em claustrofóbicos diálogos internos, urdia tramas em que subvertia sua imagem ilibada de cidadão exemplar e dava vazão, ainda que em devaneios, a uma faceta desordeira, lasciva e dissimulada de sua natureza. Com o passar do tempo, foi desenvolvendo uma súbita fixação por conteúdos violentos dos noticiários da mídia e por obras literárias de temática sombria, das quais as de Edgar Allan Poe, Aleister Crowley e H. P. Lovecraft eram as mais recorrentemente visitadas. Dos devaneios às referências e das sombras de seu espírito há muito reprimidas, uma tragédia pessoal se precipitou como hecatombe so...

Parnaso

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Sob o manto frio da indiferente fleuma, O castigo vagueia e a morte conspira, Na penumbra dos dias, minha sina prevalece, Esvaindo o alento nas areias da ampulheta O fado desdito a mim relegado De engodos gozosos se fez vereda, Ao poeta insano que vagueia ao léu  Das escarpas abissais de uma alma perdida. Nas veias lateja a volúpia excruciante, De rostos e corpos que singram meu ser, E em rotos versos, maldito me retrato, À cupidez dos algozes, meu banquete de fel. Bruxuleia a centelha, luz mortiça de meu ser Alumiando com sombras minha essência Detentora da solitude na prescruta de abrigo, Na sublime culpa da paixão levada a termo A cálida razão, qual fera acorrentada, Meus desatinos recrimina, qual brida me cerceia E de júbilo e lágrimas num embate desigual Minha sina transcende, de augúrio a epitáfio. Ah, destino! Indiferente algoz Deste tolo bardo de coração maltrapilho  A consequência é aguilhão que me trespassa o peito, Para que a dor me acalente com seus braços de impos...

Ébrio fortuito

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  Eu estava na fila do banco, esperando para pagar um boleto vencido, com os míseros trocados que ainda julgava ter na conta. Era uma segunda-feira cinzenta, minha boca estava seca e a cabeça explodindo em uma enxaqueca daquelas. Na minha frente, uma matrona mal-humorada reclamava de tudo. Atrás de mim, um sujeito de terno e gravata, com uma bíblia a tiracolo, bradava ao celular sem parar, como se estivesse num púlpito. Eu suava em bicas, só pensava em pagar minha dívida e sair dali o mais rápido possível. Quando finalmente chegou minha vez, fui até o caixa e entreguei meu cartão e o boleto. O cara olhou para mim com cara de nojo, digitou alguma coisa no computador, depois me devolveu o cartão e disse, num irritante tom monocórdio: _Desculpe, senhor, mas o seu saldo é insuficiente. _Como assim? - perguntei, entre incrédulo e cínico. _O senhor tem apenas dois reais e quarenta e três centavos na conta. _Isso é impossível! Tinha pelo menos cem reais ontem! _Talvez o senhor tenha feito...

Quatro cantos

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                                 I Na dúvida imerso, em gestos e olhares Ocultos na penumbra, de luz e pensamentos Carícias, palavras, sentimentos e más intenções Decretam a capitulação da razão à volúpia.                                  II No Olimpo do desejo, a virtude é esguia Desvelando segredos tornados fetiches Sob as bênçãos de Baco, cortejando Diana Brindando o pomo de Adão ao monte de Vênus                                  III Corpos se consomem, em luxúria imolados Percutindo mãos, em portentosas carnes E unhas riscando poemas erráticos Em peles suadas, quais páginas borradas                                  IV O élan se esvai ante o advento ...

Fissuras

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Cirzo fios de mágoas nos rombos das paredes Do abstrato calabouço dos sonhos irrealizados De frios tijolos irreais, tecidos de árida nostalgia  Sem dedais que me protejam da torpe agulha das intenções natimortas E teço bordados de arame farpado  Na rude superfície de sentimentos chapiscados Emoldurando a clausura com a aridez da concretude Concedendo o zarcão à ferrugem de minhas correntes  De fio a novelo, as vivências se emaranham Em retinto atro que nos tolda o arbítrio Furtando das cores a primazia das palhetas Tingindo de cinza os rubros matizes das paixões De alcova a calabouço A culpa maculou o êxtase E a utopia que virou martírio Fez do engodo, cadafalso Urdindo delírios, aplaco meu tormento Costurando paredes, quais cabais infortúnios Até que minha sina substitua o labor Pela alvissareira dádiva da inexistência.

Catarse

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O sereno da noite da metrópole fulgia em prismas nas gotículas que ungiam sua cabeça, brincando com luz do poste, bruxuleando errantes, até se unirem em filetes que desaguavam em seu rosto, misturando chuva e lágrimas, quais como rio e mar, num torvelinho de emoções impressas no rosto crispado do donatário de um coração partido. O vento da madrugada era açoite, lutando contra o gélido concreto, disputando com as intempéries a primazia da pungência sobre a carne fustigada que abrigava um espírito quebrado. O atro firmamento se escondia atrás de espessas nuvens, negando aos viventes o deleite da lua cheia sequestrada, como que conspirando por um cenário de tristeza e melancolia. O rugido dos carros, que renteavam de forma ameaçadora as pernas prostradas na via, era vez ou outra suplantado por buzinadas esparsas e ofensas disparadas por condutores alheios ao desencanto humano tornado obstáculo viário. Alheio a tudo que não fosse sofrimento, o pretenso algoz de si levantou-se, fitando o ab...

Orgasmatório

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  No leito ebúrneo e cálido, em noites brumas Ao fulgor dos desejos, em êxtase cativos Num balé de corpos febris, ao léu das paixões Perscrutando recônditos, lares de flamantes desejos. Teu hálito que me incendeia o falo Desnuda intenções levadas a termo, E mãos que se misturam em regozijo Enredam-se cúmplices, em mútuo deleite. De teus lábios, sequestrados à luxúria Lúbricos gemidos me condenam ao gozo Quando as idas e vindas ao palato Transbordam em jorro o inevitável clímax. Do idílio espocam os sentidos, em ígneos matizes E num suspiro extasiado, almas plenas se aquietam Sublimando o cio, cedendo ao torpor do sentimento Aninhando Eros no colo, para um súcubo ninar. Já não há suspiros e devassos gemidos Pois nossos corpos só dançavam em meus devaneios No compasso frenético que só o amor concebe Em versos soltos de fantasia nos poemas de um sonhador solitário.

Triângulo imperfeito

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  Na distração habitual de um passeio fortuito, meu olhar distraído foi capturado pela silhueta que me singrou o rumo, furtando minha atenção. Sabendo da iminência de minha perdição, ousei mirar os olhos que, ao arrepio da prudência, fitavam descaradamente os meus. Por um instante, ambos ignoramos o braço que enlaçava o gracioso cós da pretérita ninfa e que a retinha cativa ao corpanzil de ogras formas de seu indesejado acompanhante. Como fosse coreografia de um balé farsesco, nossa atenção convergiu temor e constrangimento às feições do golias ressurreto. Pensei e temi qual seria sua reação diante de tão confesso e imperdoável acinte? Empinando o nariz com altivez, estufei o peito numa profunda inspiração, prevendo a reação do orc ofendido. Enquanto eu decidia pela dissimulação ou pelas desculpas, o casal veio a mim. E antes que eu pudesse verbalizar um cumprimento, o Quasímodo, como num desajeitado passo de tango, abraçou sua Esmeralda e a impôs um torturante e roubado beijo. No...

Noir

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  Erik Satie dedilhava Gymnopédie em algum piano num passado distante, e num capricho da tecnologia, os delicados acordes vinham do lado de fora da janela e preenchiam os espaços da sala escura e vazia, onde jazia minha carcaça ouvinte, ali, no chão, sobre uma esteira puída de vime, acompanhado de uma garrafa de vinho pérgola barato, consumida pela metade. Recomeços são melancólicos, muito mais que alvissareiros, e no limiar entre a meia-idade e a velhice, esta verdade soava como dogma. O caminhão da mudança só chegaria amanhã, e aquela esteira finíssima que estabelecia a fronteira entre meu corpo combalido e as tábuas corridas do assoalho dava sinais de que não forneceria nenhum conforto para a noite que se prometia insone. A penumbra do quarto era profanada por chistes de neon fugidios, vindos do letreiro do hotel do outro lado da rua, que bruxuleavam em fractais no chão e nas paredes, dando àquele vazio de objetos e ânimo, uma psicodélica impressão de desalento. À medida em que...

Epitáfio marginal

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  Acelero mais uma vez nesta avenida que parece não ter fim. O sol do poente me cega, enquanto gotas de suor se misturam às lágrimas que insistem em não cair. A cacofonia vinda das calçadas urra aos meus ouvidos, mas o que escuto é o matraquear dos diálogos internos na minha mente. O caminho que trilho insiste em me perseguir a cada olhada no retrovisor e os prédios à frente parecem correr em minha direção para me esmagar, enquanto continuo acelerando. Há quatro lugares vazios no carro, mas o miasma da multidão que já os ocupou ainda persiste em me fazer companhia. O ocaso se torna noite, toldando a visão e aguçando a sede de viver, que por falta de fastio, é mero apego a uma persistente agonia, novo nome de uma defunta chamada esperança. E é assim, fugindo de meus diálogos internos, da multidão que me assombra, dos infinitos olhos dos edifícios que me cercam, dos caminhos que insistem em se tornar precipícios e dos espelhos que me negam reflexos e entregam zombarias, virei à direi...

Playground

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  Com a xícara nas mãos e a cigarrilha nos lábios, peguei aleatoriamente um dos tomos da prateleira. Conferi o título: Iluminuras. Parecia o dia perfeito para expor Rimbaud ao crivo do meu mau humor matinal, ainda que me sentir um coelho entre campânulas rogando preces ao arco-íris estivesse bem aquém do meu contumaz azedume. Minhas mãos trêmulas nunca foram boas cúmplices de minhas intenções e enquanto meus neurônios tentavam articular esforços para administrar em conjunto nicotina, cafeína e celulose, consegui incendiar o robe com a cigarrilha, para logo em seguida encharcá-lo de café. Menos mal que o Rimbaud sobreviveu ileso ao abrigo da mão esquerda, enquanto a direita fazia-me o obséquio de lançar fora do corpo aquele tecido amarfalhado, queimado, ensopado e pleno do bodum característico de vestuário muito usado e pouco lavado. Enquanto me vestia, lancei olhar àquele livro, um dos muitos que compro para ler depois (ainda que esse depois nunca chegue), e a capa consistia num fu...

Pedrete

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Lá estávamos no coletivo, tradicionalmente acomodados nas últimas poltronas, trocando ideias, desfrutando da melhor hora da labuta, que é a de ir pra casa, e dentre outras amenidades proferidas para encher linguiça, meu colega desabafa: _Pô, cara, o Pedrete é foda! _Conheço esse cara não... _Como não conhece, meu? O Pedrete! - protestou o interlocutor quase indignado. _Amigo, não conheço esse tal Pedrete, mas se você desembuchar logo o que ele fez, vai me ajudar a entender. - ponderei. _O Pedrete é folgado. Ontem eu estava pilotando minha moto e ele entrou na minha frente. Quase me derrubou e ainda por cima ficou nervosinho e saiu xingando. É que eu sou de boa, senão ele ia ver só. _Entendi. Apenas não consigo aceitar que naquela cidadezinha minúscula onde moramos, eu não conheça esse indivíduo... _ O pedrete, pô! Pesdrete, pestrede, pestedre... _PEDESTRE, você quis dizer? _É isso que estou dizendo desde o começo. Você parece um burro. Meu amigo inclinou o assento ao máximo, virou para...

A goiabeira

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  Era uma manhã de outono típica no campo de obras. Havia chovido no dia anterior e as máquinas de terraplanagem disputavam espaço com pedras, buracos e desníveis entre o restante da vegetação desmatada, conduzidas furiosamente na lama por operadores motivados pela promessa de um dia de horas-extras e pelo efeito ainda pungente do café da manhã consumido momentos antes, com o firmamento como teto e os tambores de combustível como mesas. Enquanto eu recolhia os despojos do desjejum e me dirigia ao carro da empreiteira para voltar ao escritório, um súbito burburinho, que rapidamente se transformou em discussão paralisou os trabalhos, e os ânimos exaltados entre operadores e o encarregado da obra representavam mais que um convite a me envolver na confusão, mas uma convocação de fato. Chafurdando na lama com minhas botas de bico de aço, rapidamente cheguei no cerne do tumulto, que consistia num operador amuado de um trator de esteira com sua máquina parada na frente de uma solitária go...

Cavalheirismo cafajeste

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  Lá estava eu novamente na mesma mesa, da mesma padaria, com a mesma ausência de companhia de sempre, para mais uma vez, desperdiçar uma manhã de outono tomando café, comendo pães de queijo e conjecturando sobre novas maneiras de me autossabotar. Só que desta vez, o casal na mesa à frente impunha um obstáculo ao meu intento: uma calorosa discussão entremeada por cochichos agressivos e maneirismos mútuos, que eram disfarçados por falsas gentilezas quando flagrados por olhares errantes. Enquanto os querelantes se esmeravam em convencer o outro sobre algum tipo de razão afrontada que necessitava reconhecimento, desisti da minha postura autocêntrica e me permiti o pecadilho da curiosidade, apurando os ouvidos e prestando atenção ao que o casal cochichava. O assunto era uma desconfiança dela quanto a algum tipo de trabalho informal que o cara realizava e que segundo sua versão, era pretexto para encontros fortuitos com amantes. Ela vociferava entre cochichos: _ Trabalho o dia inteiro, ...

Noctívago

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Nas sombrias veredas da noite Ecoam sussuros de pretérita dor E o pavor enregela meu sangue Quando soa o azucrim do infesto No arvoredo busco refúgio  Entre caules, nas sebes intrincadas Que bruxuleam enquanto escafedo Como que saudando meu infortúnio  Olhos no escuro me fitam Fazendo o coração disparar Com os gritos de horror que ecoam E o perfume da morte no ar No véu rasgado da escuridão O nefasto se fez presente Não há refúgio nem salvação Apenas o fado que mereci Prostrado, suspiro e me rendo Tornando o medo em placidez Pois este mundo atro e insano Minha morada haverá de ser.