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Mostrando postagens de maio, 2020

Arbítrio

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Entre passos curtos e rápidos, espalhava o saibro com os pés, com olhar fixo no horizonte, imerso em seus dilemas. Havia chegado a um ponto da existência em que o entusiasmo cedera a primazia de ânimo ao questionamento, à contemplação, à nostalgia e ao remorso. O que o movia adiante, no caminho e na vida, era uma espécie de script inexorável, sob o mote de uma obrigação autoimposta, desprovida de motivação. Aceitava serenamente as consequências da satisfação de suas vontades, dos meandros de suas escolhas, das concessões a troco de renúncias. Tergiversava internamente a respeito de um pretenso arbítrio que fosse a explicação para tudo que vivera e se tornara, mas que espécie de autodeterminação seria essa que não lhe permitia sequer cessar por si as batidas de seu coração, obrigando-o a seguir vivo? As cores vivas do campo, os sons e cheiros da natureza, nada suplantava a imersão em si propiciada pela solidão que lhe secundava. Chegou enfim ao seu destino e se propôs como missão não um...

Fanatismo

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Às dezessete horas em ponto, Jair ligou a TV, num misto de expectativa e apreensão, para assistir o tal vídeo da reunião presidencial. "Mãe, vem ver o mito falar. Traga o tremoço. Pode colocar no mesmo prato em que almocei e larguei na mesa da cozinha." A vinheta de notícia urgente piscou na telinha.  "Mãe! Cadê a cerveja?" E a idosa, no exercício da paciência de Jó: "Você pediu tremoço, Jair". "Pô, mãe! Quem come tremoço sem cerveja? Acho que você ficou gagá!" O som de chinelos se arrastando deu lugar ao ruído da porta da geladeira se abrindo, seguido do característico clique de garrafa sendo aberta. Jair tornou sua atenção à TV. Um ministro vociferava contra índios e ciganos e desfiava um rosário de palavrões.  "Cara bom! Manda esses animais pra Venezuela. Índio nem é gente!" A velha chegou com a cerveja, ruborizando com o palavreado chulo que vinha da TV. "Que coisa horrorosa, Jairzinho! Muda de canal. Seu pai não gostava de pal...

Desjejum

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Pegou o telefone, digitou o número de sempre para a saudação de todo dia, tão comum como um desjejum qualquer. "Bom dia, princesa!" - empostou a voz, meloso - "Anime este bruto. Diga pra mim: o que sou pra você?" "Bom dia, amor! Você é o ar que eu respiro, sem você eu não vivo", replicou preguiçosamente a amada, em descompromissada cumplicidade. "Te amo! Fica bem! Se cuida! A gente se fala! Beijão!" - despediu-se apresssado, o mancebo. "Te amo mais, se cuida também, beijo! - finalizou a detentora do afeto recebido. O telefone da moçoila torna a tocar. Ela sorri enquanto confere o número na tela e atende com inegável entusiasmo, contido num sussurro: "Bom dia! Pensei que tinha me esquecido." O interlocutor, ignorando a saudação, vai direto ao assunto: "Hoje dá?" Ao que lhe é replicado: "Meio-dia, no lugar de sempre." Um toque simultâneo de dedos em botões, encerrando a ligação, fez as vezes de despedida. Ela guar...

Esquema

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Esquema Ainda faltava um quarto de volta do relógio para o fim do expediente, mas ele mal se despediu dos colegas, fechou a porta de sua sala com força desnecessária, sem trancá-la e se dirigiu ao estacionamento de forma trôpega, afetado pela pressa. Enquanto sentava ao volante do carro, jogou a pasta de trabalho no banco de trás, enquanto a outra mão girava a ignição. Deu a ré sem olhar, fechando a porta com o carro em movimento, enquanto o condutor de outro veículo desviou sua rota para evitar a colisão, gesticulando, buzinando e proferindo impropérios. Chegando a seu endereço, estacionou, subiu correndo a escadaria, tropeçou no cachorro e entrou na residência como se estivesse em fuga. Enquanto corria para o chuveiro, largou as roupas pelos cômodos, calçou os chinelos, esbarrou na samambaia e pegou a toalha. Tomou seu banho de gato, rumou ao quarto, vestiu sua melhor roupa sem se enxugar, calçou seus sapatos novos, borrifou patchouli no pescoço, dividiu suas mechas com três estocada...

Coletivo singular

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O ônibus parou ao carminar do farol, enquanto eu sorvia do amargor liquefeito em negro, que me queimava o palato e aquecia o ânimo. Da poltrona do coletivo, a fleuma do olhar de uma passageira cruzou com o sarcasmo de minha atenção, ali naquele balcão, onde por alguns minutos, toda manhã, eu incorporava o juiz impercebido da humanidade. Por um desses jocosos caprichos das filigranas do cotidiano, ambos usávamos boinas. E não eram só boinas. Eram exatamente iguais, cinzas, enterradas meio de lado nas distintas e respectivas cabeças. Enquanto os olhares persistiam em se desafiar, surpreendi-me em como um mero adereço poderia influir tanto em como as pessoas poderiam ser percebidas. Na distinta senhorita, dava ares de elegância, ornando em tom com sua echarpe e brincos, que apesar de discretos, eram traídos pela reluzência. Em mim, somava uns dez anos de idade na aparência, já envelhecida por um longo e fino cavanhaque salpicado de grisalho. Meu casaco, em tom pastel, ornava com a boina, ...

Alana

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As nuvens corriam céleres, impelidas pelo vento da noite, encadeando figuras no negro firmamento daquela noite de lua cheia. Recostada na cabeceira de sua cama, protegendo suas débeis espáduas com o puído travesseiro, pela janela Alana procurava no torvelinho noturno algum astro que a alegrasse, na esperança que fosse uma estrela cadente. Num capricho atmosférico, as nuvens se abriram, deixando perpassá-las uma suave, porém intensa luz branca, quase um clarão, que invadiu o quarto, irrompendo sem nenhuma cerimônia. _É a Lua aparecendo – cogitou Alana – Que linda luz ela trouxe! Mas o que parecia o luar se movimentava pelo céu, ora parecendo sumir, ora, quase ofuscando os sonados olhinhos de Alana, que se enchiam de admiração e espanto. Quando o fenômeno parecia fadado ao fim pelo cerrar da cortina de nuvens, o inesperado ocorreu: o clarão abandonou o éter adentrando o quarto e antes que o pensamento de Alana suplantasse seu assombro, foi aos poucos tomando forma... Uma menina, talvez, ...

Boemia

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O que parecia ser as batidas do coração o despertou.  A vibração sob seus pés o deixou confuso. Enquanto levantava a cabeça outrora aninhada sobre seus braços prostrados sobre a mesa, batidas do coração e vibração sob os pés tornaram-se um torturante som de bate-estaca, preenchendo o ambiente e os ouvidos. Ousou abrir os olhos, num hercúleo esforço, para voltar a ser cegado, não por pálpebras, mas pelo neon e pelos flashes estroboscópicos que alucinavam os donos dos corpos dançantes que tomavam o salão. Onde estavam seus amigos ou melhor: onde ele estava que não estavam ali seus amigos? Suas companhias à mesa eram garrafas de uísque vazias, copos sujos e cinzeiros cheios. Faltava ali inclusive a sobriedade que havia se afogado num daqueles copos engordurados. Respirou fundo, enquanto, entre estalos no pescoço e nas costas, punha-se de pé, aspirando sofregamente o oxigênio saturado de alcatrão. Ninguém notou enquanto se esgueirou pelos cantos, apoiando sempre uma das mãos nas parede...

De per si a mim

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No mesmo horário de sempre, num dia que poderia ser qualquer um, fitou-se diante do vidro retrorrecoberto de aço, sobre a pia. Entre esgares e histrionices, tentava reconhecer-se naquele naco de matéria orgânica refletido, que teimava em imitar-lhe os movimentos. Não fosse pelas chispantes órbitas esmeraldas a lhe mesmerizar a percepção, aquelas difusas formas em pouco remontariam indícios de humanidade. Num átimo de paranoia, crispou as mãos que, pela morfologia, apêndices filiformes e dimensões, era análoga a de um primata de milênios idos e fez tilintar cacos de vidro ao chão, alguns deles amortecidos pelo viscoso caldo de hemácias que os precedera. Continuou a fitar o espaço entre os córneres da moldura.  Caprichosamente, uma daquelas hediondas órbitas esmeraldas faiscantes ali permanecia, num escaleno fragmento vítreo, tornando em desespero sua loucura. Tratou de arrancar com as unhas, num ímpeto iroso, o derradeiro lembrete de sua efígie grotesca impresso em engodo naquele re...

A Jornada

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As outras duas pacientes ainda dormiam, quando ela terminou de se vestir. Sentiu dores e desconforto ao calçar suas sandálias gastas, de plástico amarelado, outrora transparente. O corte da cirurgia não doía, mas ainda que que bem suturado, parecia querer romper, a cada movimento que fazia. Olhou em volta, uma das mulheres ao lado acordou e tentou se levantar, mas percebendo o soro aplicado no braço, apenas se acomodou e suspirou, sussurrando um bom dia quase ininteligível e retornando ao torpor da anestesia. Finalmente a enfermeira chegou, apressada, e enquanto recitava recomendações médicas, ajudou a paciente a pôr-se em pé. "Sua sacola, eu levo", disse a profissional, como se aquele saco plástico com algumas peças de roupas sujas fossem um fardo incapacitante à paciente. Empreenderam então sua jornada compartilhada pelas rampas do nosocômio.  A enfermeira ditava o ritmo da caminhada e ambas trocavam monossilábicas expressões sobre uma ou outra observação do arredor. O movi...

Churrasco

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_Ô de casa! Quem diabos, chamaria em minha varanda, às sete da manhã de um sábado, em tempos de pandemia, interrompendo meu necessário isolamento social? Pus a cabeça para fora da janela. Era o Jair. Um pitoresco espírito de porco, que pela contingência de ter convivido infância e adolescência comigo, tornara-se uma espécie de parente indesejado, alguém possuidor de uma consideração afetiva que esmerava em não merecer. _Não vai chamar pra entrar? O desejo era o de atirar o troféu de truco da estante na cabeça do infeliz, mas controlando as emoções, mandei o desalmado ficar sentado ali mesmo, na mureta. _Bora lá em casa fazer churrasco? -propôs o energúmeno - Já tenho carvão e linguiça; você leva carne e cerveja, tá ok? Respirei fundo, resfoleguei, tirando um sorriso demente da face do mala sem alça e o inquiri: "Tá de sacanagem? Seus pais idosos e debilitados moram contigo. Não tem medo que alguém os contamine? Além do mais, dou valor à minha própria vida. Vou ficar quieto no meu ...

Patriarcado

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Desligou o abajur e se recolheu à cama, refúgio de sua rotina ou como preferia imaginar, verdugo dos dias e berço que embalava as noites. E assim como sempre, antes que o sono o abatesse toldando a consciência, começou a desfiar seu rosário de súplicas ao ser supremo. Pediu saúde aos milhões de doentes e esperança aos tantos moribundos que jaziam nos leitos, por todo o mundo. Suplicou pelo fim de todas as guerras e conflitos que dizimavam a humanidade em toda a extensão do planeta. Clamou por todas as panelas, pratos e barrigas vazias que pontuavam invisíveis, a desigualdade entre as gentes. Intercedeu pelas tantas crianças e mulheres abusadas, espancadas e mortas, pelas ruas e dentro das residências, por toda parte. Reservou o fecho para aqueles muitos que não tinham moradia, que eram vítimas de incêndios, tsunamis, vulcões, terremotos, inundações, secas e todas as intempéries naturais que se abatiam sobre os seres viventes. Virou-se de lado, rendendo-se ao peso que cerrava suas pálpe...

Simbiose

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Finalmente ela veio. Aquele cabelo comprido, preso em coque atrás da cabeça, os indefectíveis óculos vintage pontiagudos dos lados, aquele batom vermelho delineando sua boca de forma a torná-la um muxoxo, o vestido justo na medida de quem dedicou parte da existência a caber nele, os modos felinos que não evitavam que as agulhas negras de suas meias patas negras marcassem sua marcha em direção à mesa com ritmados e sonoros passos. Enquanto ela se sentava, com a sempiterna atitude ofendida que usava a título de charme, cumprimentei-a com um "demorou, heim?", devidamente respondido com a saudação "esperou porque quis". Após um entreolhar mútuo ofendido tanto quanto simulado, ela estendeu-lhe o rosto, sendo retribuído com um leve roçar de lábios entre a boca e o queixo, que se contivesse volúpia, bem poderia ser chamado de beijo. Enquanto ele sorvia seu choconhaque, ela pousou sua carteira de mão sobre a mesa e enquanto se olhava no espelhinho para garantir que o cumpri...

Fogo fátuo

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O silêncio, profanado pelo cricrilar vindo da escuridão do terreiro era alvíssara para o que se propôs a executar. Naquele fim de mundo, onde a vizinhança era grandes espaços preenchidos de nada, talvez pudesse se dar ao luxo de permitir gritos, enquanto empreendia sua intenção. Aos conhecidos, estaria na metrópole. Aos que se escandalizariam com o resultado de seu plano, a autoria seria uma incógnita que em nada remontaria a si. Enquanto balouçava na rede, na penumbra profanada pelo luar, observou sua candidata a vítima chegar, caminhando a passos curtos e despreocupados, farfalhando seu longo vestido branco nas pedras do passeio, evocando um espectro, que talvez viesse a se tornar dali a pouco. Conferiu seus instrumentos: corda, faca, pá... Tudo que precisava estava ali, menos a proximidade de sua vítima, o que felizmente para ele, era questão de tempo. Muito pouco tempo por sinal. Decidiu se levantar somente quando ela estivesse à sua frente, ávida por sua atenção, carente de seus f...

Medo

À parte as impressões que provoco, jamais fui corajoso. Sou sim, alguém que, em virtude do medo, não tem outra escolha senão parecer destemido.

Os amantes

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Haviam aproveitado bem aquela hora de almoço. Não fosse pelos cabelos molhados, as vestes amassadas e a fingida formalidade, ninguém suspeitaria de nada. Afinal serenava e perambular por aí era um desafio fatal à elegância. Não fosse também pelo hotel de má reputação defronte ao escritório, talvez houvesse burburinho pela súbita chegada da dupla ao escritório. Mas quem em pleno juízo se arriscaria a amarrotar tão decadentes lençóis? Além do mais, eles sempre traziam balas de menta e distribuíam aos colegas, sempre que voltavam juntos do almoço. Afinal, cúmplices de alcova não costumam incluir mimos a outrem em suas preocupações. Quando passaram pelo contínuo e o escriturário, conseguiram ouvir, em passant: "sérios como esses dois, estou pra ver". Seguiram juntos, impávidos e calados até o fim do corredor, que se bifurcava em duas salas amplas. Antes de adentrarem cada qual seu recinto e retomarem o rumo de seus afazeres, entredentes ele a inquire: "Amanhã, de novo?"...

Kafka

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Acordar sob um estado de espírito kafkiano, sentindo-se como Gregor Samsa, apesar de estranho, não é tão preocupante. Sentir-se vez ou outra como uma barata, um inseto asqueroso e insignificante, está no escopo da angústia existencial tão própria dos seres humanos. O que não tem perdão é ter "sangue de barata".

Lacunas

Na ausência, transbordam presenças, ainda que as lonjuras imponham lacunas.

Átimo

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Momentos que passam, sobrevivência em risco, desafios prementes de átimos do imponderável. A existência flui à revelia das vontades, com destino de final definido, entre capítulos tão insanos quanto improváveis. Hoje são apenas visões através das janelas da percepção; amanhã serão memórias, até que sejam definitivamente esquecidas.

Torpor

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Era um despertar entre os milhares não queridos de uma jornada em que outros tantos ainda ocorreriam. E enquanto a rotina de despacho matinal de um produto humano conveniente à manutenção da estrutura era levada a cabo, a realidade insistia em sinalizar que um dia como os outros, talvez todos, estava em curso. Estacou na soleira. Perguntou-se o porquê de prosseguir. Encontrou mil motivos para isso. Perguntou-se se era o que queria. Respondeu a si que não. E concluiu que as expectativas de outrem eram apelo deveras débeis para que se convencesse que deveria ser um entre bilhões, ao custo de não ser "ele". Cerrou a porta, virou a chave. Largou a mochila ali mesmo e enquanto caminhava de volta ao quarto, deixava um rastro de sapatos, camisa, cinto, meias e quaisquer motivações que se contrapunham ao seu arbítrio. De volta ao quarto, fechou as cortinas, a porta, aninhou-se em lençóis e cerrou os olhos, na vã esperança do advento de um torpor eterno, que fizes...

Acaso certo

Elucubrações sobre o porvir são meras conjecturas que os racionais chamam de planos, os otimistas alcunham de sonhos e os passageiros do acaso as ignoram.

Antígona

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Entre trapos, o andarilho, outrora rei, se consumia em remorsos, traçando erráticas trajetórias, guiado por sua cegueira autoimposta. A ruína preconizava o óbvio ocaso, o fim, que quanto mais distante se avistava, menos esperança concedia à margem de um pretenso alívio que nunca chegaria. Oriunda de suas gônadas, em virtude de seus desatinos, a mão que o conduzia sem saber para onde, era seu único resquício de humanidade. Uma história seria contada a respeito por milênios, como a maldição de reviver a derrocada de quem nasceu como presságio da dor e por um ato de heroísmo foi alçado à glória, mas por obra de seu destino de personagem trágico, vagou como cego, exilado e maltrapilho até o fim de seus dias. O epíteto para a tragédia nominou-se Édipo, mas a candura e dedicação de Antígona, ainda que insuficientes para a redenção de seu genitor, são inspiração para espíritos atormentados sempre terem esperança que os frutos de nossas escolhas poderão um dia nos reservar algum al...

Nonsense farmacológico

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Bom dia! Vocês têm Arovit? _Arovit não tem. _Sabe se tá pra vir? _"Tapravir" também não tem. Agradeci, ri e fui embora.

Son(h)o

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A consciência irrompeu indesejada, com o consequente entreabrir dos olhos, sem distinguir o que era torpor ou penumbra. A fome seria um bom pretexto para desafiar a prostração, mas avaliou o que teria pela frente ao decidir pôr-se em pé e agir em conformidade com sua condição de organismo vivo e pensante. Assear-se, providenciar seu alimento, atender semelhantes em demandas incontornáveis, ainda que irrelevantes, informar-se da deterioração progressiva e cotidiana da realidade a qual estava peremptoriamente inserido, a perspectiva de adicionar aos dias, compromissos desprovidos de propósito... Cerrou novamente os olhos, aninhou-se entre as cobertas e, na impossibilidade de não existir, devolveu sua consciência a Morfeu, na vã esperança de habitar seu reino pela eternidade.

2020, Capítulo Final

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Há dias, a família se reunia logo cedo na sala de visitas, para o briefing matinal. Janelas pregadas firmemente com tábuas? _OK. O cadeado e a corrente no portão da frente estão íntegros? _OK. As tramelas das portas da frente e dos fundos foram forçadas? _Não. Como está nosso estoque de água e comida? _Talvez dure mais dois dias. Quem ficará a postos, na próxima vigília da madrugada? Vovô se dispôs. Afinal de contas, dormitava praticamente o dia inteiro entre as refeições e à noite ficava desperto. Totó, subitamente começou a latir no quintal, trazendo medo e apreensão aos confinados. _Todos em silêncio! Se não nos notarem, irão embora. Perguntavam-se, desanimados e assustados, por quanto tempo ainda duraria esse tormento, essa clausura, esse risco de serem trucidados pelas criaturas que haviam tomado as ruas e atacavam selvagemente qualquer coisa que denunciasse inteligência e humanidade. Totó esgoelava lá fora e temiam que desta vez o portão s...

Hipocrisia

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Cobrarei tudo de ti e mesmo que me deres, acharei-me no direito de te dar o oposto do que quero para mim. Todo hipócrita é assim. Errei, mas a culpa de meu erro é sua, pois por mais que eu faça o que quero e tu também faças o que quero, o tudo que espero de ti e que não podes me dar será motivo para minha eterna insatisfação. Todo hipócrita é assim. Se falhei, e meu erro é pior do que o seu, de nada interessa a proporcionalidade: Estarei isento do crivo de sua crítica (e de minha autocrítica), pois meu erro é humano e o seu, mero pretexto para que eu legitime o que faço de errado. Todo hipócrita é assim... A dor que me causas por saber de minha inconsequência não será aliviada pela sofrimento que te causo, mas fazê-lo sofrer me trará a satisfação de não estar sozinho ao tragar toda a possibilidade de felicidade para o desespero de meu vazio interior. Todo hipócrita é assim... E eu também, às vezes.

Café

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Por entre a fresta da porta entreaberta passava um fio de luz matinal, assim como um convidativo aroma de café. A rotina, os compromissos e afazeres certamente não eram motivações dignas de convencê-la a desistir de continuar ali, prostrada, à espera de um nada que fizesse mover os ponteiros do relógio rumo a mais um despertar compulsório, mas o café... Eis um pretexto digno a pôr-se ereta e a contragosto, cumprir o roteiro de sua farsa cotidiana. Pensava em quantos outros dias vivera que não tivessem valido um gole de café forte e quente numa manhã fria de inverno. Lembrou-se de pessoas que transitavam por seus dias que não tivessem deixado mais marcas que uma gota de café caída em sua roupa. Evocou emoções instantâneas que não tivessem provocado sensações mais intensas que a dor de sorver, inadvertida e sofregamente, um gole de café fervente. Trouxe à sinestesia, o amargo de um café sem açúcar que vez ou outra, parecia mais doce que a realidade a seu redor. Envolta em re...

Homem de bem

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"Se pego o irresponsável que deixou isso aqui, eu arrebento", proferiu Jair, entre urros e impropérios, enquanto manquitolava, com expressão que denotava mais raiva do que dor. Acabara de tropeçar num cavalete que sinalizava pintura fresca de meio-fio, mas com um vício de origem imperdoável: interpunha-se entre Jair e seu percurso matinal, grave sacrilégio ao seu direito de ir e vir. Seguiu adiante, resmungando, pisando na tinta fresca, não sem antes jogar o cavalete no meio da rua. Afinal, sua dor e indignação necessitavam de um escarcéu à altura. Ao atravessar a rua, devidamente interditada com o cavalete derrubado, cruzou com Nelson, seu vizinho diabético, que retornava da padaria devidamente paramentado com máscara de proteção e luvas. Ao bom dia recebido, retribuiu com um acesso de tosse tão forçado quanto regado a perdigotos. "Sujeito asqueroso. Doentes como ele deveriam ser confinados em campos de concentração", remoeu Jair. Seguindo seu caminho,...

Fleugma

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Fleuma estática Bons augúrios Às seis horas da manhã Despertar consciente A realidade renasce Sorrisos pastéis Mãos que procuram Te acham e te perdem Não conhecem, só te sentem E te esquecem.

Catalepsia

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Um silêncio estranho, acompanhado de uma súbita escuridão preencheu-lhe os sentidos. E com surpreendente alívio, os pensamentos cessaram, tornando inviável o raciocínio. Frio, calor, já não distinguia a sensação que o ambiente teimava em impingir em sua tez. Com uma serenidade sorumbática, pouco se importou em discernir se estava ereto ou em decúbito. Afinal de contas, descobrira agora que o não-sentir podia ser tão compensador quanto o prazer. Imerso no nada em que se tornara, mal pôde sentir o zíper selando o invólucro negro que o continha. Afinal de contas, a partir daquele momento, o que ele era já não havia e o que se tornaria, não seria jamais.

Assimetria

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A gravação do som de sino ressoava pelo arrabalde. E desperto pelo marco sonoro, comecei a contar as badaladas eletrônicas: uma, duas... Contei seis, depois o silêncio. O zumbido em meu ouvido, companheiro constante de alguns anos, era a garantia de que estava de fato, acordado. Percebi que estava com o braço dormente. Rolei para um lado, deitando de costas, sentei-me, arrastando o corpo em direção à cabeceira, tentei mover o artelho amortecido e achei graça em constatar que só conseguia balançá-lo para lá e para cá, sem tato, sem propriocepção, sem coordenar movimentos. Pus-me em pé, o braço pendente, inerte, como se não fosse meu, mas um parasita que me sugasse o ombro. Pensei em meu corpo como fosse a vida, o braço morto como fosse a mim e percebi o quanto as analogias se prestavam ao ridículo de meu despertar. E pensei, como braço morto que era, o quanto de inútil se resumia minha existência. A parte de um todo plena de razão de existir, mas numa condição imprestável, ...

Singularidade

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Era um amarfanhado de sensações e sentimentos tão dúbios quanto intimidadores. E surpreendia que fosse visível, tanto quanto sentido. Um grifo físico, quase um sol de sujas iridescências, emanando incertezas, produzindo desalento. À proximidade, reagia sibilando, soando de forma a se perceber na pele, não nos tímpanos. Ao ser fitado cegava a visão, produzindo cintilantes silhuetas por detrás das pálpebras. Ao limiar do toque, deixava-se perpassar, causando na cútis de si envolta, a sensação de visco tornado sílica. Um halo emanava da quimera, esvanecendo a realidade ao redor, tornando tempo e espaço numa maciça massa ebúrnea que se estendia ao infinito. De tudo que outrora havia, restávamos nós: o grifo, eu e o inexorável. Num átimo de singularidade, amalgamamo-nos na não-existência, tornando ao que verdadeiramente somos. Num derradeiro rompante de consciência, achei que o torpor decorrente era o prelúdio de um sono eterno, mas estava enganado. Era apen...

Leviandade (Haicai II)

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Matou, não morreu Pensou, então lamentou Viver para quê?

Praça

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As folhas que chovem, enquanto percorro as alamedas do jardim O chilrear das aves, reclamando para si a atenção que teimo em conceder às memórias O alarido das crianças a reinarem num mundo de fantasia, o qual fui expulso há muito Os aromas que digladiam nos ares, pela primazia dos sentidos O mosaico irregular do passeio, que teima em me impor o jugo de seus fractais Tudo converge ao presídio de meu fastio: O labirinto intrincado das vivências onde um dia nos perdemos.

3-1= Infinito

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Na distração habitual de um passeio fortuito, meu olhar distraído foi capturado pela silhueta que me singrou o rumo, furtando minha atenção. Sabendo da iminência de minha perdição, ousei mirar os olhos que, ao arrepio da prudência, fitavam descaradamente os meus. Por um instante, ambos ignoramos o braço que enlaçava o gracioso cós da pretérita ninfa e que a retinha cativa ao corpanzil de ogras formas de seu indesejado acompanhante. Como fosse coreografia de um balé farsesco, nossa atenção convergiu temor e constrangimento às feições do golias ressurreto. Pensei e temi qual seria sua reação diante de tão confesso e imperdoável acinte? Empinando o nariz com altivez, estufei o peito numa profunda inspiração, prevendo a reação do orc ofendido. Enquanto eu decidia pela dissimulação ou pelas desculpas, o casal veio a mim. E antes que eu pudesse verbalizar um cumprimento, o Quasímodo, como num desajeitado passo de tango, abraçou sua Esmeralda e a impôs um torturante e roubado ...