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Jardim do Tempo

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Jardim do tempo  Um tênue mormaço aquecia as costas do encimesmado ancião, enquanto este, com as mãos nuas, remexia substrato, terra e esterco nas raízes dos lírios no jardim. Um discreto olor de lavanda disputava os sentidos do velho com o zumbido das abelhas, que por sua vez, desenhavam ômegas invisíveis pelo arrabalde, numa labuta incessante e alheia à distante cacofonia do subúrbio. As memórias, companheiras fieis do idoso, sequestraram suas sinapses, transmutando emoções joviais em sentimentos difusos, quase lhe fugindo pelos olhos, pela impossibilidade de serem revividas. E por mais que o tempo futuro fosse cada vez menor frente ao passado que insistia em ser lembrado, uma persistente e intrigante sensação de incompletude lhe mantinha a tenacidade em persistir na existência. Gotas de suor se juntavam em filetes, prescrutando a larga testa, descendo aos lábios ressequidos, não sem antes misturar-se a tímidas lágrimas, precipitando ao solo,  brindando as flores com sal, ág...

Travessa Maturidade

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O sol luzia no firmamento, tanto quanto em seus rostos vincados pelas agruras da marcha inexorável do tempo. E os reflexos no granito do pavimento mostravam o caminho a seguir, sempre no rumo dos lampejos. O grisalho de seus cabelos prateavam a aragem que os revolviam, quais brilhos de estrelas que fulgiam em miríades. As mãos cansadas que seguravam o guidão, mais se apoiavam nele que o seguravam, mas eram suficientes para manter o equilíbrio do casal. As pernas e pés esquálidos, expostos por bermudas e chinelas, percorriam ciclos nos pedais e pedivelas, dando rumo à intenção de ambos, alheios às gentes, carros e casas que os ladeavam. Na garupa, os graciosos trejeitos de uma dama extasiada com o vento que acariciava sua tez cansada, contratavam com os puidos panos que a trajavam, trazendo em tons pasteis, um encanto próprio dos quadros de Degas. Quisera um pedregulho se interpor entre o caminho e o biciclo, furtando do casal o equilíbrio, lançando-os ao canteiro, onde um arbusto os ac...

Naufrágio

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Ele a fitava, olhando para o mar. _Quero ter-te de novo. Você me conhece e sabe do meu desejo - disse-lhe ela. _Você é perfeita demais para que alguém diga que te merece, ainda que quem diga seja você mesma. E isso não é ruim, apenas significa que você é mar revolto e sou uma jangada - ele respondeu. _Então imerja em mim; seja o naufrágio que acolherei nas profundezas do mar de lágrimas que minha saudade criou. _Ao risco dos vagalhões levarem os destroços do meu ser a praias que não sejam seus braços, para que a areia de seus litorais profanem o que nasceu para ser seu?  _O risco da perda daquilo que pode ser meu, vale um instante que seja de seu singrar em minha superfície ávida dos carinhos de sua proa. Capitaneia-me, meu marujo. E num mergulhar de cabeça, abandonando a frágil segurança da madeira sob seus pés, ele se atirou nos braços de sua sereia, qual tritão em volúpia, ressurreto em forma e essência, compartilhando sua verdadeira natureza com o par há muito desgarrado. E num...

Provação

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Na sala de espera, o som ambiente da TV sintonizada em um programa de culinária se misturava a gemidos, expectorações, espirros, choro de crianças, arrastar de chinelas, mexericos venais e o sinal sonoro que apitava sempre que os números das senhas mudavam no painel de led. Impressa num papel colado na parede de azulejos brancos, a efigie de uma enfermeira com o dedo indicador ereto sobre os lábios encimava a palavra "silêncio", que confrontada ao burburinho e à cacofonia do lugar, deixava dúvidas se estava advertindo os presentes ou zombando da situação. Alheio ao furdunço e esperançoso de que fosse chamado à consulta em menos tempo do que a hora e meia que havia se passado desde sua chegada, o dono da senha número dezenove perdia gradativamente ao pouco de serenidade que o fatalismo da demora o havia investido, fazendo-o suar em bicas, seguindo de tremores em suas mãos frias. Uma criança de uns três anos insistia em lhe puxar os cadarços e nem mesmo o olhar de desaprovação ...

Malleus Maleficarum

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Os raios de sol da manhã irromperam pelo quadrículo gradeado de sua única janela, iluminando sua tez alva e imunda, de uma paradoxal contradição entre beleza e descuido. Seus cabelos negros, longos e desgrenhados, emaranhados entre lêndeas e forragem, emolduravam sua face cadavérica, encimada em um corpo esquálido, coberto por uma esgarçada túnica branca e encardida, que mais expunha suas vergonhas do que as ocultava. Ao contrário dos desjejuns dos últimos seis meses, o que foi deixado num entreabrir e cerrar da grossa porta era análogo a um régio banquete e o porquê de tal deferência ela conseguia aos poucos discernir. Tornou sua atenção àquela nesga de luz solar que iluminava um céu de azul anilado, em contraste com a penumbra do cômodo infecto em que habitava e pôde ouvir um crescente crepitar enquanto o burburinho dos aldeões parecia denotar um frenesi próprio de grandes acontecimentos. Não tocou na comida, não por soberba ou fastio, mas tomada pela apatia de quem há muito desdenha...

Outonal labuta

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Era mais uma manhã de outono, com a óbvia pasmaceira que acometia os dias que se interpunham entre os equinócios. Despertar na mesma cama, para sorver o mesmo café de cada dia, ouvindo as mesmas pequenas tragédias do cotidiano sendo grasnadas por indivíduos engravatados confinados em telas de led, esforçando-se para dar ares de novidade ao tecido de obviedades cerzido pela rotina de absurdos que compõem a vida das formigas humanas, em nada representava algum tipo de motivação que lhe sequestrasse do enfado. Em poucos minutos teria de estar em um coletivo abarrotado de proletários oprimidos pela vida, esfregando-se uns aos outros, tossindo, espirrando, dormindo, tagarelando, cada qual cumprindo seu roteiro de engrenagens puídas, no aguardo de compartilharem ferrugem quando enfim, estivessem encaixadas e girando na gigantesca máquina de moer gente chamada labuta, onde os poucos momentos em que se sentiriam humanos eram quando estivessem comendo ou defecando entre um toque de sirene e out...

Efemeridade

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Momentos que passam, sobrevivência em risco, desafios prementes de átimos do imponderável. A existência flui à revelia das vontades, com destino de final definido, entre capítulos tão insanos quanto improváveis. Hoje são apenas visões através das janelas da percepção; amanhã serão memórias, até que sejam definitivamente esquecidas.

A reunião

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O silêncio de sua mente contrastava com o cacofônico alarido advindo da mesa redonda executada naquela távola quadrada.  E subitamente desperto, espantou-se com o quão pouco pode ser dito em tanto desperdício de vocábulos esparsos. Num magnífico esforço cognitivo, empenhou-se em concatenar as frases proferidas com a errática pertinência do arbítrio de quem as dizia, em franca dissonância com a atenção de outrem, a qual contraditoriamente, inexistia. Pensava no que urgiam suas demandas, na lógica que faltava no fato de prostrar-se, obediente e anímico, sobre aquele móvel quadrangulado, como se tudo que lhe conviesse fossem filigranas de irrelevância face ao jugo da burocracia. Antes que o juízo das circunstâncias alheias se submetesse à própria gênese, a estridência da sirene rasgou-lhe o véu do torpor da semiconsciência com a higiênica panaceia libertadora da célere marcha dos cronógrafos que lhe anunciava novas obrigações.  Levantou-se de súbito e caminhou solerte no rumo da ...

Imanente risco

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Que meu silêncio ribombe em significado;  Que minha inércia seja fértil à transformação;  Que persista o essencial no âmago do caos;  Que o destino certo não sucumba à calmaria e que eu tenha maturidade para não culpar os ventos quando escolher adentrar as tempestades. Que meu silêncio ribombe em significado;  Que minha inércia seja fértil à transformação;  Que persista o essencial no âmago do caos;  Que o destino certo não sucumba à calmaria e que eu tenha maturidade para não culpar os ventos quando escolher adentrar as tempestades. Que meu silêncio ribombe em significado;  Que minha inércia seja fértil à transformação;  Que persista o essencial no âmago do caos;  Que o destino certo não sucumba à calmaria e que eu tenha maturidade para não culpar os ventos quando escolher adentrar as tempestades.

Natalicídio

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Quisera um anjo ter-lhe oferecido a dádiva de um rebento que fosse querido e predestinado a grandes feitos, mas sua prenhez era fruto de uma violência a qual não pôde se defender. E naquela noite da véspera de Natal, suas contrações doíam menos que o medo do porvir. Na fria calçada da estação ferroviária, o papelão era sua cama e a solidão, sua companhia. A resposta a seus gemidos eram os ecos que ouvia, abafados pelo ruído das grossas gotas de chuva que precipitavam do éter. Não havia mãos a ajudar senão as suas e na impossibilidade de se despir, rasgou num átimo seus andrajos, abrindo caminho para quem haveria de conhecer em muito breve, a fria atmosfera de um dia chuvoso e a gélida indiferença de uma sociedade apodrecida. O papelão embaixo de si, encharcado de chuva e líquido amniótico, tingia-se de um rosa, que aos poucos tornava ao vermelho. As pernas sujas e esqueléticas se abriram, enquanto o esquálido torso se apoiava para trás sob braços finos, com múltiplas perfurações supura...

Evoé

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           Noites escritas em letras e vinho          Ocultas do luar por paredes e teto          Povoadas por amantes, brindadas a Baco          Com corpos nus, na cúmplice busca do gozo          Ao sabor um do outro, pele, mucosas, dentes e línguas          Numa dança lúbrica, entre contrações e gemidos          E pelas frestas da persiana, invasivos e reveladores          Fiapos de luz banham os dorsos suados com invejoso luar          Como fustigados fossem por Selene, em triste solidão          Pelo pecado do êxtase que teimavam em ostentar          Entre idas e vindas, dentro e fora de si, em corpos e sentidos          Qual siameses com a promessa de uma infinitude efêmera  ...

Campo-santo

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Uma silhueta encapuzada surgiu de relance, vinda do arvoredo. Seu vestido púrpura, de longas bainhas de renda negra, escondia os pés que o conduziam, farfalhando ao roçar as folhas secas, dando a impressão que a aparição de tons ígneos flutuava pela noite de pleno luar. A ambiência do sepulcrário, invadido pela batalha, compunha-se do som de espadas percutindo carne, ossos e metais, tochas flamejando e  imprecações que sucediam lamentos de agonia, que foram cessando à medida em que o assombro crescia, catalisado pela visão da rubra silhueta. Como que zumbificados, invasores e moradores largaram suas armas e caminharam, trôpegos e ofegantes, em direção ao espectro escarlate. As carcaças mutiladas, prostradas e besuntadas em sangue, mesmo despidas do élan vital, arrastavam-se atrás dos vivos, preenchendo a atmosfera com ulos fantasmagóricos e nauseabundo odor de morte. Aos poucos, mortos e vivos circundaram a aparição, formando um cerco estático, como um assédio ao vulto carmesim. Um...

Fome

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Após pagar a passagem no guichê, seus bolsos ficaram tão vazios quanto o bucho que roncava. E a volta e meia no relógio que faltava para seu embarque era promessa de um martírio famélico portentoso, até que pudesse recostar na poltrona do busão e dormir por todo percurso para não se lembrar do vácuo no abdômen, onde havia mais costelas que gordura. A fome fazia com que a cabeça não funcionasse direito. Tinha momentos de ausência, onde pensamentos esdrúxulos escanteavam a razão e a percepção da realidade. Num desses arroubos de insensatez,  imaginava-se um modelo fotográfico ou manequim de desfile trajado com o fino da moda, circundado de ávidos olhares femininos, cheiroso e limpo, no limiar de fartar-se de acepipes num desses restaurantes de luxo, que só sabia da existência por ter folheado uma revista de fofocas enquanto se aliviava numa das privadas nauseabundas da rodoviária. O delírio foi abruptamente dissipado por mais um agonizante rugido de suas aéreas entranhas. Decidiu and...

Café e Cevada

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Em uma manhã de segunda-feira, na padaria de sempre, os colegas se encontram antes de iniciar o batente. _Passe o açúcar. De amarga basta a vida, quanto mais café. _Ficou louco? Você é diabético.  _E essa cerveja aí, às sete da manhã? Também mata e é amarga como café sem açúcar. _Amigo, não sou mais casado justamente porque não gosto que deem pitaco nos meus gostos. E olha que minha ex-mulher tinha xana. Você, nem isso. _Coleguinha, você que me encheu o raio do saco quando te pedi o açúcar. Está explicado porque a gostosa da sua ex-mulher te trocou pelo ascensorista. Você é chato demais. _Bicho, perder mulher pra ascensorista pouco me afeta. Triste seria perdê-la para um folgado que não presta nem para adoçar o café sozinho. _Você não precisa de mim para ser corno, brother. Basta arranjar uma mulher e esperar o dia seguinte para ela te trocar pelo primeiro cara que cruzasse o caminho, não por escolha, mas por necessidade. _Pode até ser, mas pelo menos eu não sou um inútil que preci...

De Profundis

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Enviezados seguem os passos descuidados A conduzir, trôpego, o timoneiro da esperança perdida Por mais que das tormentas advenha a bonança O fado vil, como carma, transmuta ouro em flandres Das promessas, agouros frustram a fortuna Tornando em óbolos as conquistas imerecidas Consumindo a essência, o âmago é o que resta Desnudando ao roto a alma em frangalhos Augúrios tardios da outrora quimera Lívida agora, conquanto esvanecida Até que o gozo seja apenas nostalgia.

Original Pecado

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Eu era Adão, despertando com o gosto de maçã na língua cansada das notívagas incursões naquele corpo ainda adormecido, prostrado no torpor do deleite. E a perdição, ainda  prostrada em lençóis, ressonava qual felina, desafiando sua face a expressar alguma sensação que não fosse sereno contentamento. A fresta na janela deixava perpassar um fio de luz, qual holofote, que à medida em que profanava o templo de minha volúpia, revelava convidativas nádegas, despudoradamente expostas pelo capricho de um cobertor amarfalhado. Os cabelos bagunçados, qual ráfia desfiada, acortinando com grandes rasgos aquela tez acetinada, que circundava carnudos e carminados lábios, entreabertos, quase num convite involuntário à luxúria. Seus olhos se entreabriram, confrontando meu olhar, para então me brindar com uma piscadela. Despiu seu semissorriso onírico, mordiscando o lábio inferior, num desafio explícito à minha libido, ao qual servilmente retribuí com uma ereção. E num átimo de consciência, ao cede...

Depressão pós-coito

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Findo o êxtase, as impressões. E o silêncio ofegante era o abecedário que continha mágoas suplantadas pelo êxtase que ainda teimava em subsistir, ignorando a letargia que se apossava dos corpos por si consumidos num embate mútuo a favor de ambos. O script era o mesmo de sempre: idas plenas de autoestima inflada pela ocitocina e hiatos de presença pelas impossibilidades sociais compartilhadas, seguidas por reencontros famintos, onde o imponderável era escravo do inexorável. Como todo ciclo, em seus meandros, as particularidades do relacionamento, se é que assim pode ser descrito, descreviam parábolas, paralelas e tangentes, envolvendo terceiros, aspirações não contempladas, ligações não atendidas, ciúmes contidos, porres terapêuticos e promessas de ruptura jamais levadas a termo. E assim passaram-se anos. Décadas... E mais uma vez prostrados entre braços e pernas entrelaçados, nos lençóis maculados de secreções, refletidos no teto por um espelho inquisidor, a reflexão era a mesma: Tudo ...

Travessia

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Perdi-me em ti, buscando a mim E nas veredas do engano, atalho não havia E nos atalhos que escolhi, quão longe me vi Marcando passos em dores, nos espinhos que escolhi Pés descalços, em estrepes cingidos, sangram sem singrar Os caminhos percorridos, cujo fado é fatigar A vontade outrora férrea, em lamentos vir tornar Como fosse certo o deleite, sem por isso pelejar Sob o jugo do que sinto, a razão é cativa E nem dos andrajos, o sangue, a lágrima e o suor Doem tanto quanto a ausência Finda a jornada, o destino atingi Achei-me em mim; perdi a ti.

Oco

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Preenchi-me com o vazio e ocupei espaços com nada O vácuo persistiu, o oco ganhou contornos E em tudo que persistiu O inexistir se fez querer Tornando em plasma que consumia A matéria tornada refugo.

Efêmero

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As horas seguem céleres, inexoráveis marcadores de um repouso nunca suficiente. Mas aos que, despertos pela angústia, percorrem a órbita do relógio em ciclos completos e intermináveis, os segundos se tornam horas. E aos cadáveres, também os viventes, de pouco adiantará estarem os olhos abertos ou cerrados Pois de cada fado, viver ou fenecer, jamais serão libertos do fatídico porvir.

Excertos erráticos

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Quintana ou Victor Hugo decantariam a melancolia como a tristeza romantizada ou até uma espécie de contentamento em estar triste, mas o fato é que alguém estava sentindo algo que os clássicos vetustos talvez tivessem melhor definido que vivenciado. Já há duas semanas, o burburinho das repartições, o alarido dos comércios, a cacofonia dos sentimentos haviam cedido espaço em sua vida para um estupor inicial, que aos poucos tornava-se em tédio e agora tingia de sépia o mundo, as sensações, as vontades e os seres cada vez mais ausentes e distantes, essas imprevisíveis criaturas, as pessoas. Viver em quarentena deveria ser a antítese de morrer no habitat amplo, mas o óbito das possibilidades, a certeza do distanciamento e o inexorável do imponderável traziam à consciência um torpor que se insurgia contra a esperança, na medida de um mar que circunda um náufrago. No limbo de sua abulia, fomentava devaneios, que invariavelmente eram suplantados em urgência por dilemas relacionados à subsistên...

Urgente!

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Sobre urgência, postergações, procrastinações e afins: Só quem tem o irresistível impulso de deixar para amanhã aquilo que deveria ter sido feito ontem pode entender a vontade que estou de postergar para algum outro dia, aquilo que me propus escrever agora nestas mal traçadas linhas virtuais. Afinal de contas, perceba:  À parte os casos de vida ou morte, tudo o mais que mereça a alcunha de urgente obedece ao crivo das pertinências de outrem, com as devidas menções aos autoritários, mimados, impacientes, intermediários da burocracia e demais corruptelas da premência, que nos fustigam cotidianamente com suas sempre inadiáveis demandas. Quem nunca recebeu uma ordem superior quanto a alguma tarefa "urgente", que ao nos consumir competência, preocupação, articulações pessoais e horas de trabalho, às vezes às custas do descanso e do lazer de direito, teve seu primor de resultado engavetado para a posteridade ou esquecido sobre alguma empoeirada escrivaninha por aí? Pior:  E quando ...

Ludum Vivere

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Era um prédio erigido em juscelinas eras. Não tinha o ar vetusto das construções seculares que persistiam em abrigar estabelecimentos por aquelas plagas e as grades que o circundavam lhe conferiam uma aura de austeridade que oprimia mais a percepção de quem observava do que aquele que o habitava. Esta arquitetura peculiar abrigava a mais variada fauna pedagógica:  Sisudos bastiões de uma permanentemente afrontada dignidade docente; Simpáticas senhorinhas de conservadores modos a desfilar por passadiços, sempre abraçadas a livros, cadernos e calhamaços de almaços;  Púberes aprendizes, alguns insolentes, outros em sincero esforço em aprender e um sobejo apenas pondo em prática o que não aprenderam em casa e cujos pais delegaram à estrutura a responsabilidade que lhes cabiam;  Adolescentes em joculares vestes, cortes de cabelo esdrúxulos e trejeitos estereotipados que não os definiam, porém os identificavam com as respectivas vertentes estéticas em voga;  Onipresentes b...

Eu, invisível

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Acordei invisível. Não descobri de imediato, pois a escuridão que salvaguardara meu sono fazia com que tudo no quarto também parecesse invisível. Dei-me conta da minha invisibilidade somente ao olhar o espelho, enquanto abria a gaveta do gabinete para pegar a escova de dentes. Surpreendi-me mais com a naturalidade com que me descobri invisível do que com a estranha imagem de um pijama ereto e vazio no reflexo e enquanto me divertia em ver a escova e a espuma do dentifrício flutuando em obediência à escovação, comecei a avaliar as possibilidades oferecidas por existir e não ser visto. Decidi abdicar das roupas para perambular incólume por aí e uma estranha sensação de liberdade e culpa passou a me acometer a partir do momento em que abri a porta e saí para a rua. O estranhamento à minha condição era alimentado por uma desorientação incômoda, pois não vislumbrava meus pés, mãos, nada que em mim auxiliasse a evitar que enquanto andasse, pisasse em falso ou esbarrase nos anteparos do camin...

Livro

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Livro-me de ti, escória de lembranças mal vividas E livro a quem de mim aspirou alvíssaras em troca de ilusões Livro do dever da recíproca aqueles que amparei, pois falhei mais do que acertei Livro do futuro as vivências do porvir, por constatar que o que vivi já me basta Livro-me da minha vida, à parte esquálido vivente, ainda persisto de pé, à espera do nada E cerro o livro da minha vida, escrito por mim, mas lido por ninguém.

Um dia a mais ou menos

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Um dia a mais ou menos Jorge era um suburbano sonhador. Por entre as lacunas da labuta, tecia em sonhos, desejos que o tempo se encarregava de esmaecer. E nas noites curtas como o cobertor de suas finanças, os sonhos que tinha acordado não davam as caras. Às vezes fuçava gavetas e olhando fotos antigas, via a si como um conhecido de outrora e os amigos e familiares, como sombras ou fantasmas de um filme que já vira, mas pouco se lembrava. De seus lábios crispados pela sempiterna angústia, a tosse e os bocejos eram mais presentes que a fala, dando a si um ar sorumbático que contrastava com a passiva ingenuidade de seu íntimo. O tempo gasto em divagações, de pé nos coletivos que o levavam e traziam do trabalho seis vezes por semana, a atenção difusa, quase automática que dava no acabamento dos quatrocentos e oitenta rodapés que produzia e encaixotava por dia, eram um lapso de sua percepção de existência, que vez ou outra, era interrompido pela dor de bolhas estourando em seus dedos. A ca...

Sobre amor e violões

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Pela terceira vez, ele havia se matriculado no curso de violão da paróquia local. Não que tivesse ouvido musical ou que seus dedos curtos permitissem malabarismos nos trastos do instrumento, tampouco porque aspirava ser o centro das atenções nas rodas adolescentes dedilhando alguma música do Renato Russo. Todas estas aspirações haviam sucumbido ante a lógica do "não dou para a coisa", mas desta vez, havia uma motivação que suplantava gostos e necessidade de autoafirmação: Suzy estava matriculada na nova turma. Helton e Suzy eram vizinhos de rua, mas apesar da inevitável percepção mútua, havia um constrangimento pueril que impedia que levassem os entreolhares velados à algum tipo de interação, nem que fosse um singelo cumprimento. Nos amenos finais de tarde daquela primavera, por muitas vezes esses flertes ocorriam. Suzy, sempre indefectível com seus cabelos longos e soltos sobre suas camisetas de bandas de rock, dissimulando olhares nem sempre cândidos a Helton, sempre desvia...

Inumanidade inata

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Após horas perambulando, tendo como rumo o tanto-faz intencional, esparramou-se na calçada, sob a primeira marquise que encontrou. Às suas costas, uma vitrine expunha aos transeuntes coloridas vestes, calçados, chapéus e acessórios, numa quase psicodelia em contraste ao monocórdio tom de cinza-amarronzado dos andrajos do andarilho, cuja humanidade lhe era negada por cada par de olhos que chispavam desprezo pela absoluta miséria que vivenciava. Não que o desprezo das pessoas lhe incomodasse; preferia a execração que a invisibilidade, até porque não era quem o ignorava que lhe lançava moedas vez ou outra. Lançou ao largo um olhar de prescruta, buscando no arrabalde um papelão que nivelasse as ranhuras do mosaico da calçada às feridas de seu dorso, ou algum cano minando água que lhe aplacasse a sempiterna sede, ou quem sabe, um resto de marmita intocado aos seus rivais, as moscas, os ratos e os cães vadios. Em vez disso, ali, do outro lado da rua, percebeu um brutamonte trespassando o cós...

Flores florem

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Havia transcorrido um dia desde o solstício da primavera, esta que por sua vez, iniciara-se há dois dias. Talvez o frescor da estação tivesse motivado que aquele cumprimento cotidiano viesse acompanhado de um olhar compartilhado e um afago nos cabelos de sua até então amiga, causando em si um arrepio retribuído por um suspiro. A partir dali, os esbarrões de ombros tornaram-se abraços, os olhares trocados iniciavam cúmplices conversas, os cafés evoluíram a almoços, as despedidas em encontros, as esparsas lembranças do outro em tórridos compromissos de alcova. E na nova realidade que desfrutavam, afagos, arrepios, almoços, encontros e compromissos de alcova subverteram a outrora rotina em uma história que apenas aguardava começar para dar a entender que sempre existira. Então pelos vindouros anos, assim como a chuva cairia, o sol amornaria, e o frio enregelaria, nas primaveras do porvir, para os cúmplices do mútuo sentimento, as flores floresceriam e jamais seriam esquecidas de seu desab...

Ciclos

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Elevam-se e condensam Em lapso precipitam Intenções levadas a termo Torrentes do ser tornado vivo Águas caídas, caudalosas Em cálidos cursos Erráticos ao derradeiro fado Dos plácidos lagamares Tortuosos flumes  Profundos mares Sentimentos represados No limiar do romper da presúria Algures aluviem, insensatos frutos Na vida o sentido Da natureza, o destino.

Quimera

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Outrora viço, agora mágoa, tornado remorso Vulnerável é o ânimo, escravo das vivências Que por tortuosas linhas rascunha o malgrado feito fátuo Por não ter para si o que oferece a quem não quer, qual volúpia imerecida Recebido como capricho, assaz venal, feito nobre coisa rota Rastejando a face lívida na ampla tez de um corpo indiferente Na morna nulidade de prostrar banal, a quimera do sonho profanado.

Crepúsculo

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O crepúsculo se avizinhava, o sol fenecia em gradientes pastéis, os esparsos cirros riscavam de branco o que restava de azul no firmamento, o cálido mormaço cedia vez à aragem fresca que aguardava o escurecer para tornar-se gélida e fustigar os incautos que ignoravam que a lua crescente traria dali a pouco, a primeira noite de inverno. Alheio ao clima, à estação do ano, ao livro que trouxera e não lera e ao fluxo dos transeuntes rumo ao portão do parque que fecharia dali a pouco, acomodou-se no banco de madeira e passou a observar o frondoso suinã que interpunha-se entre ele e o sol poente. O carmim salpicava toda a copa, variando entre botões assemelhados a feixes de pimentas e flores desbragadamente desabrochadas, projetando rubros pistilos, brincando com os olhos, quais falenas bailarinas. As folhas, em contraste à pirotecnia voluptuosa das inflorescências, como que resignadas coadjuvantes, precipitavam em lotes, amarelecidas, rodopiando e tecendo erráticas trajetórias até pousarem ...

Um sábado qualquer

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Era sábado mais uma vez. E condicionado que era aos ciclos que definiam sua rotina, sujeitou-se ao esperado de uma folga hebdomadária, concedendo-se um passeio que o salvasse do ócio acachapante. Decidiu perambular pelo centro da metrópole e se dar uma chance de ter da vida, das pessoas e do acaso, mais que outro sacal estupor sabatino. Há muito desfrutava de uma solidão relativa, preenchida com relações voláteis, socializações impostas, miríades de irrelevâncias preenchendo seu vácuo vivente, ocupando seu tempo e consumindo suas forças, mas sem alimentar seu espírito. Elucubrando ia pelo Largo da Matriz, quando apiedou-se de um semelhante em situação de penúria que esmolava entre cães, com tal roto aspecto que sensibilizaria até o mais rude avaro.  Estendendo-lhe a mão contendo um óbolo que lhe aplacasse momentaneamente a carestia, surpreendeu-se em notar uma outra mão reproduzindo o mesmo gesto. E a surpresa foi maior ao notar que ambas as mãos continham os mesmos cinco reais, ai...

Terrores Noturnos

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Despertou num sobressalto, contemplando a completa escuridão do recinto. Nada poderia ser mais assustador e pleno de desesperança que os oníricos enredos de seus recorrentes pesadelos, mas a realidade teimava em contrariar esta premissa. A testa suada em oposição aos pés gelados, a taquicardia parceirando a ofegância, a adrenalina tornando a mente escrava de emoções reptilianas, tudo era a supremacia do sentir sobre o pensar e há muito, sobreviver era conviver com temores, à espera de torpores que cessassem a dor de persistir na existência. Tentou apelar às memórias, buscando compensações do passado que urdissem algum contentamento que suplantasse a angústia, mas ao constatar que para cada prazer advinha uma culpa, esvanecia os excertos de vivência com esgares e meneares aflitos de sua cabeça confusa. O buraco estava ali de novo e não era mais algo conceitual que lhe possibilitasse descrever um estado de espírito, mas a definição cabal do castigo por ter nascido e persistido em viver. ...

Determinismo atmosférico (cativo arbítrio)

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Ocasiões há em que os fatos do cotidiano como que catalisam o clima das estações do ano e por mais que nos esforcemos em ignorar o torpor dos outonos, a frieza dos invernos, o frescor das primaveras e a intensidade dos verões, estes teimam em estigmatizar nossas sensações, contaminando o élan ocasional que nos acomete ou se interpondo à sempiterna angústia existencial que a natureza nos brindou, como que um castigo em decorrência de nosso potencial pensante. O esforço, às vezes hercúleo, de violentar nossas preferências e vontades em prol do jugo de engodos e irrelevâncias travestidos de obrigações é um convite a refletirmos se estamos realmente aptos a assumir o ônus de pertencermos a nós mesmos ou então, encarar a predestinação advinda dos estados de espírito como fator subentendido e determinante de nossas ações, as quais ilusoriamente aludimos algum arbítrio. De mim, o porvir das estações testará seu fatalismo e sinto muito por dizer: De ti, certamente também.

Orate - Capítulo I - A Escória

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Ele acabara de adentrar o botequim.  O caminhoneiro que lhe dera carona já estava ao balcão, com um copo de aguardente pela metade e uma garrafa de cerveja aberta, à mercê de sua sede viciosa.  Duas meretrizes ao lado já se achegavam, ávidas por cigarro, álcool e dinheiro.  O caminhoneiro galhofamente apontou-lhe a uma das acompanhantes, enquan to lhe cochichava algo ao ouvido.  Confidência ou coisa que o valha realizada, a prostituta veio em sua direção, o dileto carona, pelo visto o mais novo amigo do viajante e antes que se dissesse algo, a puta o pegou pela mão e foram ao balcão. Entre perdigotos, precedendo um gutural arroto, disse o motorista ao acompanhante:  “E aí, chefe? De mim só queria a carona, não amizade? Encoste aí no balcão e peça o que quiser, pois você é gente boa e pessoas assim merecem minha consideração!” Passou então a conjeturar se o que despertava a generosidade no galhofeiro era realmente sua simpatia, mas a julgar pelos ...

Orate - Prólogo

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O barulho da chuva que fustigava as carcomidas persianas de madeira do velho quarto de motel acordou-o precocemente de um sono, que apesar de povoado de sonhos tão ruins quanto merecidos, lhe poupava do dedo sempre em riste de sua consciência inquisidora. O s lençóis fétidos e amarfalhados pelo rolar de sua carcaça infame, mera garatuja do viço de outrora, absorviam a exce ssiva sudorese oriunda de seus temores oníricos. A atmosfera era de clausura, com o sarro de seu hálito pútrido se misturando ao miasma do bolor das paredes. O semblante do infeliz, oculto pela penumbra, só se vislumbrava por obra de esparsos relâmpagos, cuja luz invadia mal-vinda e inefável por entre os não poucos vãos do mosaico de madeira que ousava chamar de janela. Com o torpor do sono aliado ao resquício do álcool em suas veias ainda a lhe toldar o raciocínio, tateou em vão em busca do relógio que deveria estar sobre o criado-mudo, porém o máximo que conseguiu foi derrubar um copo vazio que se despedaçou no...