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Triângulo imperfeito

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  Na distração habitual de um passeio fortuito, meu olhar distraído foi capturado pela silhueta que me singrou o rumo, furtando minha atenção. Sabendo da iminência de minha perdição, ousei mirar os olhos que, ao arrepio da prudência, fitavam descaradamente os meus. Por um instante, ambos ignoramos o braço que enlaçava o gracioso cós da pretérita ninfa e que a retinha cativa ao corpanzil de ogras formas de seu indesejado acompanhante. Como fosse coreografia de um balé farsesco, nossa atenção convergiu temor e constrangimento às feições do golias ressurreto. Pensei e temi qual seria sua reação diante de tão confesso e imperdoável acinte? Empinando o nariz com altivez, estufei o peito numa profunda inspiração, prevendo a reação do orc ofendido. Enquanto eu decidia pela dissimulação ou pelas desculpas, o casal veio a mim. E antes que eu pudesse verbalizar um cumprimento, o Quasímodo, como num desajeitado passo de tango, abraçou sua Esmeralda e a impôs um torturante e roubado beijo. No...

Noir

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  Erik Satie dedilhava Gymnopédie em algum piano num passado distante, e num capricho da tecnologia, os delicados acordes vinham do lado de fora da janela e preenchiam os espaços da sala escura e vazia, onde jazia minha carcaça ouvinte, ali, no chão, sobre uma esteira puída de vime, acompanhado de uma garrafa de vinho pérgola barato, consumida pela metade. Recomeços são melancólicos, muito mais que alvissareiros, e no limiar entre a meia-idade e a velhice, esta verdade soava como dogma. O caminhão da mudança só chegaria amanhã, e aquela esteira finíssima que estabelecia a fronteira entre meu corpo combalido e as tábuas corridas do assoalho dava sinais de que não forneceria nenhum conforto para a noite que se prometia insone. A penumbra do quarto era profanada por chistes de neon fugidios, vindos do letreiro do hotel do outro lado da rua, que bruxuleavam em fractais no chão e nas paredes, dando àquele vazio de objetos e ânimo, uma psicodélica impressão de desalento. À medida em que...

Epitáfio marginal

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  Acelero mais uma vez nesta avenida que parece não ter fim. O sol do poente me cega, enquanto gotas de suor se misturam às lágrimas que insistem em não cair. A cacofonia vinda das calçadas urra aos meus ouvidos, mas o que escuto é o matraquear dos diálogos internos na minha mente. O caminho que trilho insiste em me perseguir a cada olhada no retrovisor e os prédios à frente parecem correr em minha direção para me esmagar, enquanto continuo acelerando. Há quatro lugares vazios no carro, mas o miasma da multidão que já os ocupou ainda persiste em me fazer companhia. O ocaso se torna noite, toldando a visão e aguçando a sede de viver, que por falta de fastio, é mero apego a uma persistente agonia, novo nome de uma defunta chamada esperança. E é assim, fugindo de meus diálogos internos, da multidão que me assombra, dos infinitos olhos dos edifícios que me cercam, dos caminhos que insistem em se tornar precipícios e dos espelhos que me negam reflexos e entregam zombarias, virei à direi...

Playground

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  Com a xícara nas mãos e a cigarrilha nos lábios, peguei aleatoriamente um dos tomos da prateleira. Conferi o título: Iluminuras. Parecia o dia perfeito para expor Rimbaud ao crivo do meu mau humor matinal, ainda que me sentir um coelho entre campânulas rogando preces ao arco-íris estivesse bem aquém do meu contumaz azedume. Minhas mãos trêmulas nunca foram boas cúmplices de minhas intenções e enquanto meus neurônios tentavam articular esforços para administrar em conjunto nicotina, cafeína e celulose, consegui incendiar o robe com a cigarrilha, para logo em seguida encharcá-lo de café. Menos mal que o Rimbaud sobreviveu ileso ao abrigo da mão esquerda, enquanto a direita fazia-me o obséquio de lançar fora do corpo aquele tecido amarfalhado, queimado, ensopado e pleno do bodum característico de vestuário muito usado e pouco lavado. Enquanto me vestia, lancei olhar àquele livro, um dos muitos que compro para ler depois (ainda que esse depois nunca chegue), e a capa consistia num fu...

Pedrete

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Lá estávamos no coletivo, tradicionalmente acomodados nas últimas poltronas, trocando ideias, desfrutando da melhor hora da labuta, que é a de ir pra casa, e dentre outras amenidades proferidas para encher linguiça, meu colega desabafa: _Pô, cara, o Pedrete é foda! _Conheço esse cara não... _Como não conhece, meu? O Pedrete! - protestou o interlocutor quase indignado. _Amigo, não conheço esse tal Pedrete, mas se você desembuchar logo o que ele fez, vai me ajudar a entender. - ponderei. _O Pedrete é folgado. Ontem eu estava pilotando minha moto e ele entrou na minha frente. Quase me derrubou e ainda por cima ficou nervosinho e saiu xingando. É que eu sou de boa, senão ele ia ver só. _Entendi. Apenas não consigo aceitar que naquela cidadezinha minúscula onde moramos, eu não conheça esse indivíduo... _ O pedrete, pô! Pesdrete, pestrede, pestedre... _PEDESTRE, você quis dizer? _É isso que estou dizendo desde o começo. Você parece um burro. Meu amigo inclinou o assento ao máximo, virou para...

A goiabeira

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  Era uma manhã de outono típica no campo de obras. Havia chovido no dia anterior e as máquinas de terraplanagem disputavam espaço com pedras, buracos e desníveis entre o restante da vegetação desmatada, conduzidas furiosamente na lama por operadores motivados pela promessa de um dia de horas-extras e pelo efeito ainda pungente do café da manhã consumido momentos antes, com o firmamento como teto e os tambores de combustível como mesas. Enquanto eu recolhia os despojos do desjejum e me dirigia ao carro da empreiteira para voltar ao escritório, um súbito burburinho, que rapidamente se transformou em discussão paralisou os trabalhos, e os ânimos exaltados entre operadores e o encarregado da obra representavam mais que um convite a me envolver na confusão, mas uma convocação de fato. Chafurdando na lama com minhas botas de bico de aço, rapidamente cheguei no cerne do tumulto, que consistia num operador amuado de um trator de esteira com sua máquina parada na frente de uma solitária go...

Cavalheirismo cafajeste

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  Lá estava eu novamente na mesma mesa, da mesma padaria, com a mesma ausência de companhia de sempre, para mais uma vez, desperdiçar uma manhã de outono tomando café, comendo pães de queijo e conjecturando sobre novas maneiras de me autossabotar. Só que desta vez, o casal na mesa à frente impunha um obstáculo ao meu intento: uma calorosa discussão entremeada por cochichos agressivos e maneirismos mútuos, que eram disfarçados por falsas gentilezas quando flagrados por olhares errantes. Enquanto os querelantes se esmeravam em convencer o outro sobre algum tipo de razão afrontada que necessitava reconhecimento, desisti da minha postura autocêntrica e me permiti o pecadilho da curiosidade, apurando os ouvidos e prestando atenção ao que o casal cochichava. O assunto era uma desconfiança dela quanto a algum tipo de trabalho informal que o cara realizava e que segundo sua versão, era pretexto para encontros fortuitos com amantes. Ela vociferava entre cochichos: _ Trabalho o dia inteiro, ...

Noctívago

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Nas sombrias veredas da noite Ecoam sussuros de pretérita dor E o pavor enregela meu sangue Quando soa o azucrim do infesto No arvoredo busco refúgio  Entre caules, nas sebes intrincadas Que bruxuleam enquanto escafedo Como que saudando meu infortúnio  Olhos no escuro me fitam Fazendo o coração disparar Com os gritos de horror que ecoam E o perfume da morte no ar No véu rasgado da escuridão O nefasto se fez presente Não há refúgio nem salvação Apenas o fado que mereci Prostrado, suspiro e me rendo Tornando o medo em placidez Pois este mundo atro e insano Minha morada haverá de ser.

Indiferença

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Odiar é dar tanta relevância quanto amar, mas esquecer alguém, prezados... É caminhar sobre um cadáver, com um sorriso indiferente no rosto.

Sobre amor e potes de mostarda

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"Você deixou o pote de mostarda de ponta-cabeça", disse ele. _ Não, querido. O pote foi concebido dessa forma para que a gravidade mantenha o conteúdo sempre junto ao bico, para evitar desperdício e facilitar que a mostarda saia do pote sem aqueles estourinhos que respingam em nossas roupas. Desenhei? _ Querida, tenho TOC. Olhar para esse pote em cima da mesa como se estivesse de cabeça para baixo está me dando gastura. _Amore mio, tente enxergar esse pote como se fosse um recipiente de mostarda, não uma obra de arte fora de contexto. Menos, né? _Benzinho, então coloque este pote longe da minha visão e não se fala mais nisso. _Coração, como vou esconder de sua visão esse pote, em uma mesa para duas pessoas? Quer que eu coloque embaixo dela? - ela respondeu arfando, com um sorriso impaciente. _Não seja sarcástica comigo,  amor. Lembra o que aquele psiquiatra do filme de comédia que assistimos ontem disse para o paciente? "O sarcasmo é o primo feio da raiva". Relaxa! ...

Hirsuto fetiche

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Hirsuto fetiche Enquanto acariciava com esmero aqueles cabelos emaranhados, de fios multicores, de variadas texturas, primando que cada afago não deixasse dúvidas sobre a honestidade de seus sentimentos, lamentava quanto tempo de vida havia sido desperdiçado sem que a candura de seu afeto tivesse sido externada, fosse com gestos, palavras ou atitudes. Os dedos grossos e nodosos se revezavam com as costas das mãos rugosas na primazia de acarinhar aqueles fios, enquanto os olhos de pesadas pálpebras continuavam cerrados, deixando a inspiração do tato suplantar a visão, trazendo à sua mente a supremacia da idealização sobre a obviedade da percepção. Nas profundezas oníricas de seu córtex, todo um romance de agruras superadas com a intensidade de um amor real, posto que imaginado, era rememorado como um filme em que o roteiro era ficção, o enredo, não. Passos rápidos e ritmados vindos do corredor tornaram os devaneios em apreensão. Puxou com energia aquele tufo de cabelos da escova da patr...

Sobre um trevo renascido

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Em uma incursão ao meu quintal, perdi a tira de meia-calça que prendia minhas madeixas, mas em compensação, percebi que o trevo de quatro folhas que eu considerava morto, havia renascido.  Deve ser a natureza dizendo que enquanto houver vida, haverá esperança. Ou que quando não houver pedaços de meia-calça para prender os cabelos, haverá sempre um trevo de quatro folhas para te distrair do aborrecimento. Ou então deve ser a minha mania besta de impregnar significado em tudo que vejo, vai saber?

Heathcliff Ressurreto

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Rearranjando pela enésima vez minha biblioteca, um objeto caído de um exemplar de "O morro dos ventos uivantes" despertou-me a reflexão de que no final das contas, o que importa não é o que se vê, mas o que se percebe, insinua, desvela, instiga, provoca, desperta, reconhece, transcende, emana, inspira e sobrevive impávido, mesmo após após saciado. Explico: Quando você abre um livro e se depara com uma velha embalagem de bombom cuidadosamente trançada em laço, o que vai invadir suas memórias? O chocolate saboreado, mastigado e deglutido ou a vivência que impregnou de sentido aquele reles e subestimado pedaço de papel? Com a devida vênia a todos os chocolates que comi e a todas as almas bem (ou mal) intencionadas que os me presentearam, nenhum deles foi tão delicioso quanto aquele que outrora fora envolvido no invólucro rosa transparente, decorado com partituras e um casal bailando, esmaecido pelo solvente do tempo. Por um capricho do destino ou intencionalidade há muito esquec...

Hipocrisia

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Cobrarei tudo de ti e mesmo que tudo me deres, acharei-me no direito de te dar o oposto do que quero para mim. Todo(a) hipócrita é assim. Errei, mas a culpa de meu erro é sua, pois por mais que eu faça o que quero e tu também faças o que quero, o tudo que espero de ti e que não podes me dar será motivo para minha eterna insatisfação. Todo(a) hipócrita é assim. Se falhei, e meu erro é pior do que o seu, de nada interessa a proporcionalidade: Estarei isento do crivo de sua crítica (e de minha autocrítica), pois meu erro é humano e o seu, mero pretexto para que eu legitime o que faço de errado. Todo(a) hipócrita é assim. A dor que me causas por saber de minha inconsequência não será aliviada pelo sofrimento que te causo, mas fazê-lo sofrer me trará a satisfação de não estar sozinho ao tragar toda a possibilidade de felicidade para o desespero de meu vazio interior. Todo(a) hipócrita é assim. E você, como é?

Assaz fortuito

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Assaz fortuito  Era a primeira alvorada depois do inverno enregelante das plagas mantiqueireanas, mas o tímido sol era apenas um halo oculto pela grossa neblina característica da época, dando ares de madrugada à manhã que enfrentava o breu. Na falta de transeuntes a quem cumprimentar, ou conhecidos com quem compartilhar as sacais impressões sobre o clima, ou se inteirar sobre o último adultério do prefeito, ou quem sabe receber algum pedido de empréstimo dos fodidos que nos rodeiam, desta vez era somente o ar gélido que o acompanhava, com tal cumplicidade que o vento soprava no rumo de seu destino, onde certamente essa quase solidão daria vez a madrugadores defendendo seus lugares na concorrida fila do pão. Uma recorrente tontura o incomodava e desta vez um pouco mais que o normal, pois sob aquele espesso nevoeiro, divisar caminho entre pedras, buracos e ressaltos no meio-fio começava a dar ares de aventura àquele corriqueiro deslocamento. O pior veio a acontecer. O desequilíbrio, ...

Mente e coração (e) comprimidos

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Mais um dia perambulando pelas ruas imaginárias das emoções anestesiadas e enquanto divago, tropeço num tarugo de entusiasmo que não deveria estar ali. Mas que raios estaria aquele impulso anímico fazendo na segurança do meu torpor? Seria reação à ausência das vivências que outrora preenchiam meus olhos com belezas, para depois furar minhas córneas com a estéril certeza das lacunas que se sucederiam em verdadeiros saaras de arenosas nulidades? Ou a necessidade de se mostrar à miríade de individualidades que residem no atro infinito, tal como imã que pinçasse dos amplos espaços vazios as filigranas de essencialidades esparsas que estivessem eternamente à espera de serem notadas, para então, reconhecerem-se em si? Quem sabe tivesse sido um par de borboletas tingidas em psicodélicos gradientes, que em singela e improvável manobra, tapassem meus ouvidos e impedissem que eu ouvisse mais uma vez que a mediocridade é a norma e que não sentir nada é mais seguro que ter as sinapses explodidas p...

Sinfonia átona

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Sinfonia átona Enquanto caminhava, ocioso a tentar me libertar do jugo da racionalidade, vi-me absorto em sentimentos, muito mais que em pensamentos. Sentia o sol fustigante a dourar-me o dorso; sons de aves e insetos pondo meus tímpanos a vibrar, o vento, qual um suspiro etéreo a acariciar minha tez; o suor a singrar minha face em micro rios que a um incauto que observasse, poderia se confundir com lágrimas; os pés descalços a oprimir a relva, roçando ervas daninhas à medida em que as foices de meus dedos se moviam adiante.  O silêncio que não havia na natureza era abundante em meu íntimo e nessa sinfonia átona, mais imponente que o maciço pétreo a obstruir o horizonte, urgia a compreensão do que me movia na direção de um qualquer lugar chamado "encontrar-me". Com o mar sereno interior a toldar a percepção da confusa cacofonia do arrabalde distante, o toque de suaves dedos em meu ombro despertou-me com a sutileza de uma hecatombe. Era você.  Encontrei-me enfim.

Quarenta e cinco segundos

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O sol escaldante calcinava meu antebraço esquerdo, enquanto eu freava diante do semáforo em vermelho. E essa cor primária parecia onipresente no meu estado de espírito belicoso, na lataria do meu carro, na brasa do cigarro, na pele do antebraço, na minha conta bancária, na minha gravata, na placa de parada obrigatória, nos meus olhos marejados, no sangue salpicado no asfalto pela carcaça de um cachorro atropelado... Há tempos, levantar era um martírio, trabalhar era um fardo, relacionar-se socialmente era um convite à discórdia e o percurso entre meus afazeres, inoportunos momentos para infindáveis diálogos internos, nos quais peremptoriamente eu era vítima de mim por ser o algoz dos outros. Imerso na contemplação de minhas desventuras, nem percebi quando um maltrapilho aproximou-se da janela e me propôs, quase impondo, um óbolo: "Boa tarde, patrão! Dá um trocado para eu tomar uma pinga?" O turbilhão de meus pensamentos haviam me deixado aéreo. Assim como um mendigo, bem pode...

In tenebris

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In tenebris As costas doem no estrado coberto com palha E o travesseiro envolve nuca e orelhas num puído abraço Na escuridão do cubículo imagino estrelas num firmamento de estuque E os lençóis me protegem do ar encanado das frestas, roçando meu corpo Descobri há tempos que a escuridão é o silêncio que oclude a luz E cada mínimo movimento dos seres notívagos é  convite ao despertar As próximas horas serão minutos se eu dormir Assim como dias, se permanecer desperto Há um passado roto no tecido do tempo, qual trilha que aqui me jazeu Tragando minhas vivências, prometendo um futuro banal Que quando chega, se revela em um presente que nunca passa Em alguma realidade me projeto, sob o torpor do onírico Sonhos que às vezes até esperançam Disputando a primazia do meu íntimo com a aflição dos pesadelos Tragando delícias e tormentos ao limbo de um insípido despertar  Meu derradeiro tônus se entrega ao torpor do cerrar das pálpebras E me despedindo das divagações, do palpável e da rudez...

Senzala

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Uma senzala chamada frente de trabalho Sob um amontoado de palha e gente acordamos E em andrajos seguimos à labuta, sem café nem pão O sol nos fustiga tanto quanto o açoite do linguajar e das chibatas Como que testando a tenacidade de nossa nobreza ancestral Ninguém produz como nós, a um preço tão irrisório Mas nosso salário é o desprezo e a negação da justiça Nosso jantar são restos da casa grande, que sucede o almoço ausente Somos fortes, temos mais sangue do que músculos, mas resistimos À revelia da opressão, cantamos e dançamos, reverenciando o sagrado que há em nós Até que o crepitar da fogueira se esvaia, assim como nossa energia Trazendo penumbra e silêncio ao cativeiro que nos é catre, sonho e alcova Os ciclos garantirão a nós o sofrimento, a exploração e o escárnio Mas nunca nos tirarão a fibra de uma estirpe forjada na beleza de uma história milenar Hoje crispamos nossas mãos sulcadas em arados e enxadas E arrastamos correntes que prendem nossos corpos, mas não o espírito Um ...

Lonjuras

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Lonjuras são passado, não distâncias Este mesmo passado que transforma momentos em lembranças  E distâncias em hiatos de similaridades compartilhadas Até porque momentos também podem ser reencontros E como vivências que são, duram a eternidade das promessas vãs Cedendo ao jugo da nostalgia do que foi fogo e agora é cinza Tornando viço em finitude e as lonjuras, ocaso eterno sob o jugo da saudade.

Alteio

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Num ímpeto determinado, ousou sair da barraca, enquanto os primeiros lampejos da aurora iluminavam o dourado esmaecido da vegetação da cordilheira. Ainda que os alísios gélidos da montanhas teimassem em enregelar seu corpo combalido pela noite insone, prostrado sobre o chão forrado de jornais e mantas de seu iglu artificial, a paisagem que se descortinava era um estímulo e tanto para reacender o fogareiro e requentar o atro líquido que amornaria suas entranhas e despejaria em seu sangue a preciosa cafeína. Aos poucos, o hálito solar dissipava a espessa neblina, desafiando a quão longe os olhos poderiam divisar. À frente, o abismo rochoso transmutava muito abaixo em densas florestas, que se espalhavam densamente por léguas, para então entregar o espaço a pastos, vilas e fazendas.  Mais além, uma extensa represa e no horizonte oposto, outra cordilheira, encimada por nuvens que lhe encobriam os cumes. Um errante cachorro do mato o observava de longe, com as orelhas eretas, confuso ent...

A mata sombria

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A lua cheia precedeu o descerrar do véu noturno, expondo os contrastes do claro-escuro da mata do Córrego da Farinha, que ladeava a estrada de terra. E dentro da surrada camionete que praticamente se arrastava pelo saibro, estalando e fumegando, Faustino, o assustado motorista, maldizia a hora em que aceitara levar as compras do mês para o sitiante que residia no sopé do Morro do Bode Preto. Em circunstâncias normais, às dezenove horas da sexta-feira o motorista encerraria a labuta e iniciaria o gozo de seu descanso de fim de semana, mas como dizer não ao patrão que aturava seus atrasos e eventuais ausências sem demiti-lo, mesmo com a gaveta repleta de currículos? O apreensivo Faustino fixava a visão no foco do farol, evitando olhar para os lados, pois além dos perfis fantasmagóricos que a tênue claridade da lua formava ao penetrar os vãos entre as árvores, a mata trazia o agouro de ser o local de suicídios e desaparecimentos de pessoas, conforme histórias passadas entre gerações e ain...

Êxtase dionisíaco

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O último trago dele coincidiu com o derrame da última gota de vinho na taça dela. Baco já os tinha acolhido, abençoado e agora esconjurado, tal volúpia etílica compartilhada pelos consortes  naquela sacal noite de terça-feira. Ao esgotar o assunto, assim como o combustível engarrafado de seus absurdos, os olhares atravessaram a mesa de plástico branco, chispando convites entre as pálpebras pesadas de um e outra. Em impulsos mútuos se puseram em pé com o apoio da mesa, depois da parede e por fim, do abraço que os esperava com sofreguidão. Como muletas compartilhadas, os corpos rumaram, trôpegos e unidos, para o cubículo que os aguardava com finalidade de alcova. E assim, entre esbarrões na mobília e topadas com as quinas do interminável corredor, deixaram-se prostrar no catre do cubículo, amontoados como fardos jogados ao acaso. A ébria se prostrou de costas, com a saia caprichosamente levantada até o pescoço, deixando vislumbrar um hirsuto caminho de vênus, que como rombuda seta, r...

Divagações sobre fugas

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Às vezes tendemos a imaginar um fugitivo sob o prisma da impropriedade ética, moral ou legal, alguém que pelo infortúnio da causa injusta, tem que dar cabo à sua visibilidade em prol de uma incerteza geográfica que lhe salve pescoço, honra ou até culhões, de um merecido castigo. Mas... E quando a tal "fuga" é de nada, nem ninguém, ou no máximo, de si? Se nada temos a nos ameaçar, de quem ou do que fugimos? Pode não ser propriamente uma fuga.  Pode ser simplesmente o atendimento a um anseio de privacidade, o cansaço ante o jugo do senso comum, a negação de se anular em virtude do premente alheio em detrimento das próprias preferências ou até o direito do exercício da oportunidade de estar na melhor companhia possível, mesmo que esta seja a própria. Divago sobre isso na vivência do que explicito.  Num ambiente onde o caos visual dá lugar à predominância do verde da natureza, o rumor de carros e ruídos urbanos é sobrepujado por murmúrios silvestres, o ribombar da água sobre as p...

Herborismo humano

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Pessoas há como plantas: Algumas, decorativas e inertes, como samambaias; Outras, traiçoeiras como plantas carnívoras; Também há as rosas, com beleza e espinhos; As trepadeiras, que escalam obstáculos, sempre buscando os píncaros de seus limites; As epífitas, que florescem em seguras reentrâncias; As urtigas, que provocam irritação quando tocadas; Ou as parasitas, que sugam a essência de seus hospedeiros. À parte como se mostram ou o que se tornam, todas foram um dia sementes, promessas de viço, beleza ou finalidade e mesmo o determinismo específico de suas naturezas não é capaz de excluir de suas existências um imponderável espontâneo, que só se compreende quando notado na complexidade de seu macrocosmo. Produtos do meio, mas também entes em busca de sua completude, no rumo da seta do tempo, tão fractais em sua existência e tão óbvios no desfecho de sua decrepitude.

Conluio cênico

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Ali estávamos de novo naquele pardieiro decadente que talvez em priscas eras, honrasse o nome "Le Jardin", ostentado em neon na fachada carcomida pelo tempo, clima e poluição. E mais uma vez, no constrangimento habitual de um Casanova falido, convidei-a a ir até a janela e contemplar a vista do centro da metrópole, truque manjado para desviar a atenção dos móveis velhos, espelhos borrados e torneiras enferrujadas daquele matadouro de expectativas românticas. Enquanto despia meus andrajos, fitei a silhueta nua, esguia, apoiada num dos pés, braços apoiados no batente da janela, com costas, nádegas e pernas ocultas pela penumbra do quarto, mas os seios, ventre e o rosto emoldurado com cachos de medusa expostos à luz do poste em frente, ao alcance da vista de algum sortudo que por ventura olhasse para cima. Ela sabia muito bem que tipo de impressão me causava quando, fingindo indiferença e olhando para o nada,, acendia um cigarro e trocava de pé de apoio, fazendo aquelas nádegas ...

Sonhos e Ilusões

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Trouxe a mim o desejo como sonho E como sonho, a idealização se amalgamou Como dádiva onírica de um amor platônico Que incendeia alcovas, sob as bênçãos de um súcubo Não me fere a adaga da fatídica impossibilidade Visto o mel da esperança sobrepor o fel da realidade Das histórias que vivi, devaneios, à orla do ocorrido Acesa a volúpia, escrava da imaginação Se me quiseres, fiques longe, te suplico Não me dês o afago que arrepia a tez Ou o roçar de corpos que nos torne lascivos Não tome da impossibilidade a primazia da certeza E te imploro, detentora de minha essência Não profanes com amor o sentimento que lhe devoto.

Sobre amor e livros

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Amor e livros No passadiço entre os prédios, recostados no parapeito, cada qual defronte ao outro, tergiversavam na modorra de um sábado qualquer: _Você me fez sair da perifa para vir aqui contemplar aço, concreto, vidro e vãos? _Na verdade, se você atentasse para as filigranas da paisagem, nos vértices, quinas, junções, contrastes, perspectivas, desníveis, transparências e na melancolia dos monotons, já valeria a pena. Mas estou aqui. Pensei que bastaria para te instigar. _Sabe o que é? De repente você gerou uma expectativa diferente quando me chamou para o rolê. Pensei que seria uma festa, uma feira, uma balada... Mas pensando bem, se não viesse, não estaria te dando a chance de ser mais interessante do que ficar em casa com meus gatos, assistindo "O Mágico de Oz" pela centésima vez. _Aí você está querendo demais! Quem nesse mundo seria melhor companhia que os gatos e Dorothy? E como rivalizar os prédios de Kogan e Weinfeld com a estrada de tijolos amarelos? Aí fica difícil...

Partida e chegada

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Partida e chegada Meses se passaram desde a última carta respondida. E a distância física entre eles só não era maior que os prolíficos diálogos entremeados pelo passar das semanas, que pontuavam emoções e sentimentos recíprocos, trocados através do rodeio dos bicos de penas que espalhavam o escasso nanquim nas faces dos papeis de palha. Anos se passaram, desde que Rúbia e sua família singraram o sertão em carroças e lombos de burros, na esperança de permutar com o destino,  miséria por trabalho. Quando da partida, Ataíde continha as lágrimas em olhos marejados, com um sentimento de perda que ignorava ainda a saudade, mas sem noção do deserto que se abriria no latifúndio de seu coração. Rúbia, envolta em chitão e brim puído, do lombo do muar, quando na iminência da silhueta de Ataíde sumir na lonjura, acenou vigorosamente, tendo como resposta a seu gesto, um virar de costas, com a cabeça baixa, seguido do arrastar de pés pelo terreiro, rumo ao casebre que o abrigava com a mãe idosa...