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Eu, invisível

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Acordei invisível. Não descobri de imediato, pois a escuridão que salvaguardara meu sono fazia com que tudo no quarto também parecesse invisível. Dei-me conta da minha invisibilidade somente ao olhar o espelho, enquanto abria a gaveta do gabinete para pegar a escova de dentes. Surpreendi-me mais com a naturalidade com que me descobri invisível do que com a estranha imagem de um pijama ereto e vazio no reflexo e enquanto me divertia em ver a escova e a espuma do dentifrício flutuando em obediência à escovação, comecei a avaliar as possibilidades oferecidas por existir e não ser visto. Decidi abdicar das roupas para perambular incólume por aí e uma estranha sensação de liberdade e culpa passou a me acometer a partir do momento em que abri a porta e saí para a rua. O estranhamento à minha condição era alimentado por uma desorientação incômoda, pois não vislumbrava meus pés, mãos, nada que em mim auxiliasse a evitar que enquanto andasse, pisasse em falso ou esbarrase nos anteparos do camin...

Livro

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Livro-me de ti, escória de lembranças mal vividas E livro a quem de mim aspirou alvíssaras em troca de ilusões Livro do dever da recíproca aqueles que amparei, pois falhei mais do que acertei Livro do futuro as vivências do porvir, por constatar que o que vivi já me basta Livro-me da minha vida, à parte esquálido vivente, ainda persisto de pé, à espera do nada E cerro o livro da minha vida, escrito por mim, mas lido por ninguém.

Um dia a mais ou menos

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Um dia a mais ou menos Jorge era um suburbano sonhador. Por entre as lacunas da labuta, tecia em sonhos, desejos que o tempo se encarregava de esmaecer. E nas noites curtas como o cobertor de suas finanças, os sonhos que tinha acordado não davam as caras. Às vezes fuçava gavetas e olhando fotos antigas, via a si como um conhecido de outrora e os amigos e familiares, como sombras ou fantasmas de um filme que já vira, mas pouco se lembrava. De seus lábios crispados pela sempiterna angústia, a tosse e os bocejos eram mais presentes que a fala, dando a si um ar sorumbático que contrastava com a passiva ingenuidade de seu íntimo. O tempo gasto em divagações, de pé nos coletivos que o levavam e traziam do trabalho seis vezes por semana, a atenção difusa, quase automática que dava no acabamento dos quatrocentos e oitenta rodapés que produzia e encaixotava por dia, eram um lapso de sua percepção de existência, que vez ou outra, era interrompido pela dor de bolhas estourando em seus dedos. A ca...

Sobre amor e violões

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Pela terceira vez, ele havia se matriculado no curso de violão da paróquia local. Não que tivesse ouvido musical ou que seus dedos curtos permitissem malabarismos nos trastos do instrumento, tampouco porque aspirava ser o centro das atenções nas rodas adolescentes dedilhando alguma música do Renato Russo. Todas estas aspirações haviam sucumbido ante a lógica do "não dou para a coisa", mas desta vez, havia uma motivação que suplantava gostos e necessidade de autoafirmação: Suzy estava matriculada na nova turma. Helton e Suzy eram vizinhos de rua, mas apesar da inevitável percepção mútua, havia um constrangimento pueril que impedia que levassem os entreolhares velados à algum tipo de interação, nem que fosse um singelo cumprimento. Nos amenos finais de tarde daquela primavera, por muitas vezes esses flertes ocorriam. Suzy, sempre indefectível com seus cabelos longos e soltos sobre suas camisetas de bandas de rock, dissimulando olhares nem sempre cândidos a Helton, sempre desvia...

Inumanidade inata

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Após horas perambulando, tendo como rumo o tanto-faz intencional, esparramou-se na calçada, sob a primeira marquise que encontrou. Às suas costas, uma vitrine expunha aos transeuntes coloridas vestes, calçados, chapéus e acessórios, numa quase psicodelia em contraste ao monocórdio tom de cinza-amarronzado dos andrajos do andarilho, cuja humanidade lhe era negada por cada par de olhos que chispavam desprezo pela absoluta miséria que vivenciava. Não que o desprezo das pessoas lhe incomodasse; preferia a execração que a invisibilidade, até porque não era quem o ignorava que lhe lançava moedas vez ou outra. Lançou ao largo um olhar de prescruta, buscando no arrabalde um papelão que nivelasse as ranhuras do mosaico da calçada às feridas de seu dorso, ou algum cano minando água que lhe aplacasse a sempiterna sede, ou quem sabe, um resto de marmita intocado aos seus rivais, as moscas, os ratos e os cães vadios. Em vez disso, ali, do outro lado da rua, percebeu um brutamonte trespassando o cós...

Flores florem

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Havia transcorrido um dia desde o solstício da primavera, esta que por sua vez, iniciara-se há dois dias. Talvez o frescor da estação tivesse motivado que aquele cumprimento cotidiano viesse acompanhado de um olhar compartilhado e um afago nos cabelos de sua até então amiga, causando em si um arrepio retribuído por um suspiro. A partir dali, os esbarrões de ombros tornaram-se abraços, os olhares trocados iniciavam cúmplices conversas, os cafés evoluíram a almoços, as despedidas em encontros, as esparsas lembranças do outro em tórridos compromissos de alcova. E na nova realidade que desfrutavam, afagos, arrepios, almoços, encontros e compromissos de alcova subverteram a outrora rotina em uma história que apenas aguardava começar para dar a entender que sempre existira. Então pelos vindouros anos, assim como a chuva cairia, o sol amornaria, e o frio enregelaria, nas primaveras do porvir, para os cúmplices do mútuo sentimento, as flores floresceriam e jamais seriam esquecidas de seu desab...

Ciclos

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Elevam-se e condensam Em lapso precipitam Intenções levadas a termo Torrentes do ser tornado vivo Águas caídas, caudalosas Em cálidos cursos Erráticos ao derradeiro fado Dos plácidos lagamares Tortuosos flumes  Profundos mares Sentimentos represados No limiar do romper da presúria Algures aluviem, insensatos frutos Na vida o sentido Da natureza, o destino.

Quimera

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Outrora viço, agora mágoa, tornado remorso Vulnerável é o ânimo, escravo das vivências Que por tortuosas linhas rascunha o malgrado feito fátuo Por não ter para si o que oferece a quem não quer, qual volúpia imerecida Recebido como capricho, assaz venal, feito nobre coisa rota Rastejando a face lívida na ampla tez de um corpo indiferente Na morna nulidade de prostrar banal, a quimera do sonho profanado.

Crepúsculo

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O crepúsculo se avizinhava, o sol fenecia em gradientes pastéis, os esparsos cirros riscavam de branco o que restava de azul no firmamento, o cálido mormaço cedia vez à aragem fresca que aguardava o escurecer para tornar-se gélida e fustigar os incautos que ignoravam que a lua crescente traria dali a pouco, a primeira noite de inverno. Alheio ao clima, à estação do ano, ao livro que trouxera e não lera e ao fluxo dos transeuntes rumo ao portão do parque que fecharia dali a pouco, acomodou-se no banco de madeira e passou a observar o frondoso suinã que interpunha-se entre ele e o sol poente. O carmim salpicava toda a copa, variando entre botões assemelhados a feixes de pimentas e flores desbragadamente desabrochadas, projetando rubros pistilos, brincando com os olhos, quais falenas bailarinas. As folhas, em contraste à pirotecnia voluptuosa das inflorescências, como que resignadas coadjuvantes, precipitavam em lotes, amarelecidas, rodopiando e tecendo erráticas trajetórias até pousarem ...

Um sábado qualquer

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Era sábado mais uma vez. E condicionado que era aos ciclos que definiam sua rotina, sujeitou-se ao esperado de uma folga hebdomadária, concedendo-se um passeio que o salvasse do ócio acachapante. Decidiu perambular pelo centro da metrópole e se dar uma chance de ter da vida, das pessoas e do acaso, mais que outro sacal estupor sabatino. Há muito desfrutava de uma solidão relativa, preenchida com relações voláteis, socializações impostas, miríades de irrelevâncias preenchendo seu vácuo vivente, ocupando seu tempo e consumindo suas forças, mas sem alimentar seu espírito. Elucubrando ia pelo Largo da Matriz, quando apiedou-se de um semelhante em situação de penúria que esmolava entre cães, com tal roto aspecto que sensibilizaria até o mais rude avaro.  Estendendo-lhe a mão contendo um óbolo que lhe aplacasse momentaneamente a carestia, surpreendeu-se em notar uma outra mão reproduzindo o mesmo gesto. E a surpresa foi maior ao notar que ambas as mãos continham os mesmos cinco reais, ai...

Terrores Noturnos

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Despertou num sobressalto, contemplando a completa escuridão do recinto. Nada poderia ser mais assustador e pleno de desesperança que os oníricos enredos de seus recorrentes pesadelos, mas a realidade teimava em contrariar esta premissa. A testa suada em oposição aos pés gelados, a taquicardia parceirando a ofegância, a adrenalina tornando a mente escrava de emoções reptilianas, tudo era a supremacia do sentir sobre o pensar e há muito, sobreviver era conviver com temores, à espera de torpores que cessassem a dor de persistir na existência. Tentou apelar às memórias, buscando compensações do passado que urdissem algum contentamento que suplantasse a angústia, mas ao constatar que para cada prazer advinha uma culpa, esvanecia os excertos de vivência com esgares e meneares aflitos de sua cabeça confusa. O buraco estava ali de novo e não era mais algo conceitual que lhe possibilitasse descrever um estado de espírito, mas a definição cabal do castigo por ter nascido e persistido em viver. ...

Determinismo atmosférico (cativo arbítrio)

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Ocasiões há em que os fatos do cotidiano como que catalisam o clima das estações do ano e por mais que nos esforcemos em ignorar o torpor dos outonos, a frieza dos invernos, o frescor das primaveras e a intensidade dos verões, estes teimam em estigmatizar nossas sensações, contaminando o élan ocasional que nos acomete ou se interpondo à sempiterna angústia existencial que a natureza nos brindou, como que um castigo em decorrência de nosso potencial pensante. O esforço, às vezes hercúleo, de violentar nossas preferências e vontades em prol do jugo de engodos e irrelevâncias travestidos de obrigações é um convite a refletirmos se estamos realmente aptos a assumir o ônus de pertencermos a nós mesmos ou então, encarar a predestinação advinda dos estados de espírito como fator subentendido e determinante de nossas ações, as quais ilusoriamente aludimos algum arbítrio. De mim, o porvir das estações testará seu fatalismo e sinto muito por dizer: De ti, certamente também.

Orate - Capítulo I - A Escória

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Ele acabara de adentrar o botequim.  O caminhoneiro que lhe dera carona já estava ao balcão, com um copo de aguardente pela metade e uma garrafa de cerveja aberta, à mercê de sua sede viciosa.  Duas meretrizes ao lado já se achegavam, ávidas por cigarro, álcool e dinheiro.  O caminhoneiro galhofamente apontou-lhe a uma das acompanhantes, enquan to lhe cochichava algo ao ouvido.  Confidência ou coisa que o valha realizada, a prostituta veio em sua direção, o dileto carona, pelo visto o mais novo amigo do viajante e antes que se dissesse algo, a puta o pegou pela mão e foram ao balcão. Entre perdigotos, precedendo um gutural arroto, disse o motorista ao acompanhante:  “E aí, chefe? De mim só queria a carona, não amizade? Encoste aí no balcão e peça o que quiser, pois você é gente boa e pessoas assim merecem minha consideração!” Passou então a conjeturar se o que despertava a generosidade no galhofeiro era realmente sua simpatia, mas a julgar pelos ...

Orate - Prólogo

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O barulho da chuva que fustigava as carcomidas persianas de madeira do velho quarto de motel acordou-o precocemente de um sono, que apesar de povoado de sonhos tão ruins quanto merecidos, lhe poupava do dedo sempre em riste de sua consciência inquisidora. O s lençóis fétidos e amarfalhados pelo rolar de sua carcaça infame, mera garatuja do viço de outrora, absorviam a exce ssiva sudorese oriunda de seus temores oníricos. A atmosfera era de clausura, com o sarro de seu hálito pútrido se misturando ao miasma do bolor das paredes. O semblante do infeliz, oculto pela penumbra, só se vislumbrava por obra de esparsos relâmpagos, cuja luz invadia mal-vinda e inefável por entre os não poucos vãos do mosaico de madeira que ousava chamar de janela. Com o torpor do sono aliado ao resquício do álcool em suas veias ainda a lhe toldar o raciocínio, tateou em vão em busca do relógio que deveria estar sobre o criado-mudo, porém o máximo que conseguiu foi derrubar um copo vazio que se despedaçou no...

O Natal Nosso de Cada Dia

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Em seu calvário cotidiano, deu graças pelo fim de mais um dia. Enquanto puxava sua carroça repleta de papelão, olhava ora com curiosidade, outras com admiração, as ruas enfeitadas, enquanto percorria as contrastantes veredas do centro da metrópole rumo àquele cubículo de concreto sem portas ou janelas, onde por cima circulavam automóveis e embaixo, a célere e indiferente  fauna urbana. Não fosse pela inabitual cortesia enlevada pelo interessante efeito que essa época causava à agora nem tanto rude plebe ou talvez àquele pulsante pisca-pisca que substituía o lusco-fusco de sempre, aquele dia entre os demais trezentos e sessenta e quatro passasse desapercebido às suas futuras memórias, porém uma surpresa o aguardava amarfalhada entre os podres panos que protegiam do relento sua família: aquele "mais um" que no ventre de sua companheira era uma incerteza como fora sua predecessora prole, ali estava, esquálido, nu, protegido de uma realidade atroz e abençoado com uma gama d...

O Porvir Por Não Ser

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Estávamos num restaurante, apenas nós dois sentados à mesa e um garçom a nos servir.  Na mesa um salmão de um carmim intenso, uma garrafa de vinho tinto envolta em um guardanapo de pano branco.  Toalhas de mesa e cortinas, assim como o uniforme do garçom, todos brancos.  O salmão jazia em nossos pratos, mas não havia talheres nem copos.  Você parecia não se importar e sorria, contrastando com meu desespero na iminência de te decepcionar de alguma forma.  Seu sorriso persistia a dizer tudo e muito pouco; seus olhos de soslaio, me fitando.  O garçom permanecia impávido ao lado da mesa.  Tentei dizer a ele que trouxesse os talheres e os copos, mas não conseguia emitir nenhum som.  Cambiando olhares entre você e o garçom, muito desconcertado, tentei levantar.  Acordei neste ímpeto de pôr-me de pé, aturdido entre a vigília e o confortável estupor.  Você se foi, esvanecida numa etérea inconsciência que já começava a deixar saudades. ...

Arbítrio

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Entre passos curtos e rápidos, espalhava o saibro com os pés, com olhar fixo no horizonte, imerso em seus dilemas. Havia chegado a um ponto da existência em que o entusiasmo cedera a primazia de ânimo ao questionamento, à contemplação, à nostalgia e ao remorso. O que o movia adiante, no caminho e na vida, era uma espécie de script inexorável, sob o mote de uma obrigação autoimposta, desprovida de motivação. Aceitava serenamente as consequências da satisfação de suas vontades, dos meandros de suas escolhas, das concessões a troco de renúncias. Tergiversava internamente a respeito de um pretenso arbítrio que fosse a explicação para tudo que vivera e se tornara, mas que espécie de autodeterminação seria essa que não lhe permitia sequer cessar por si as batidas de seu coração, obrigando-o a seguir vivo? As cores vivas do campo, os sons e cheiros da natureza, nada suplantava a imersão em si propiciada pela solidão que lhe secundava. Chegou enfim ao seu destino e se propôs como missão não um...

Fanatismo

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Às dezessete horas em ponto, Jair ligou a TV, num misto de expectativa e apreensão, para assistir o tal vídeo da reunião presidencial. "Mãe, vem ver o mito falar. Traga o tremoço. Pode colocar no mesmo prato em que almocei e larguei na mesa da cozinha." A vinheta de notícia urgente piscou na telinha.  "Mãe! Cadê a cerveja?" E a idosa, no exercício da paciência de Jó: "Você pediu tremoço, Jair". "Pô, mãe! Quem come tremoço sem cerveja? Acho que você ficou gagá!" O som de chinelos se arrastando deu lugar ao ruído da porta da geladeira se abrindo, seguido do característico clique de garrafa sendo aberta. Jair tornou sua atenção à TV. Um ministro vociferava contra índios e ciganos e desfiava um rosário de palavrões.  "Cara bom! Manda esses animais pra Venezuela. Índio nem é gente!" A velha chegou com a cerveja, ruborizando com o palavreado chulo que vinha da TV. "Que coisa horrorosa, Jairzinho! Muda de canal. Seu pai não gostava de pal...

Desjejum

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Pegou o telefone, digitou o número de sempre para a saudação de todo dia, tão comum como um desjejum qualquer. "Bom dia, princesa!" - empostou a voz, meloso - "Anime este bruto. Diga pra mim: o que sou pra você?" "Bom dia, amor! Você é o ar que eu respiro, sem você eu não vivo", replicou preguiçosamente a amada, em descompromissada cumplicidade. "Te amo! Fica bem! Se cuida! A gente se fala! Beijão!" - despediu-se apresssado, o mancebo. "Te amo mais, se cuida também, beijo! - finalizou a detentora do afeto recebido. O telefone da moçoila torna a tocar. Ela sorri enquanto confere o número na tela e atende com inegável entusiasmo, contido num sussurro: "Bom dia! Pensei que tinha me esquecido." O interlocutor, ignorando a saudação, vai direto ao assunto: "Hoje dá?" Ao que lhe é replicado: "Meio-dia, no lugar de sempre." Um toque simultâneo de dedos em botões, encerrando a ligação, fez as vezes de despedida. Ela guar...

Esquema

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Esquema Ainda faltava um quarto de volta do relógio para o fim do expediente, mas ele mal se despediu dos colegas, fechou a porta de sua sala com força desnecessária, sem trancá-la e se dirigiu ao estacionamento de forma trôpega, afetado pela pressa. Enquanto sentava ao volante do carro, jogou a pasta de trabalho no banco de trás, enquanto a outra mão girava a ignição. Deu a ré sem olhar, fechando a porta com o carro em movimento, enquanto o condutor de outro veículo desviou sua rota para evitar a colisão, gesticulando, buzinando e proferindo impropérios. Chegando a seu endereço, estacionou, subiu correndo a escadaria, tropeçou no cachorro e entrou na residência como se estivesse em fuga. Enquanto corria para o chuveiro, largou as roupas pelos cômodos, calçou os chinelos, esbarrou na samambaia e pegou a toalha. Tomou seu banho de gato, rumou ao quarto, vestiu sua melhor roupa sem se enxugar, calçou seus sapatos novos, borrifou patchouli no pescoço, dividiu suas mechas com três estocada...

Coletivo singular

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O ônibus parou ao carminar do farol, enquanto eu sorvia do amargor liquefeito em negro, que me queimava o palato e aquecia o ânimo. Da poltrona do coletivo, a fleuma do olhar de uma passageira cruzou com o sarcasmo de minha atenção, ali naquele balcão, onde por alguns minutos, toda manhã, eu incorporava o juiz impercebido da humanidade. Por um desses jocosos caprichos das filigranas do cotidiano, ambos usávamos boinas. E não eram só boinas. Eram exatamente iguais, cinzas, enterradas meio de lado nas distintas e respectivas cabeças. Enquanto os olhares persistiam em se desafiar, surpreendi-me em como um mero adereço poderia influir tanto em como as pessoas poderiam ser percebidas. Na distinta senhorita, dava ares de elegância, ornando em tom com sua echarpe e brincos, que apesar de discretos, eram traídos pela reluzência. Em mim, somava uns dez anos de idade na aparência, já envelhecida por um longo e fino cavanhaque salpicado de grisalho. Meu casaco, em tom pastel, ornava com a boina, ...

Alana

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As nuvens corriam céleres, impelidas pelo vento da noite, encadeando figuras no negro firmamento daquela noite de lua cheia. Recostada na cabeceira de sua cama, protegendo suas débeis espáduas com o puído travesseiro, pela janela Alana procurava no torvelinho noturno algum astro que a alegrasse, na esperança que fosse uma estrela cadente. Num capricho atmosférico, as nuvens se abriram, deixando perpassá-las uma suave, porém intensa luz branca, quase um clarão, que invadiu o quarto, irrompendo sem nenhuma cerimônia. _É a Lua aparecendo – cogitou Alana – Que linda luz ela trouxe! Mas o que parecia o luar se movimentava pelo céu, ora parecendo sumir, ora, quase ofuscando os sonados olhinhos de Alana, que se enchiam de admiração e espanto. Quando o fenômeno parecia fadado ao fim pelo cerrar da cortina de nuvens, o inesperado ocorreu: o clarão abandonou o éter adentrando o quarto e antes que o pensamento de Alana suplantasse seu assombro, foi aos poucos tomando forma... Uma menina, talvez, ...

Boemia

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O que parecia ser as batidas do coração o despertou.  A vibração sob seus pés o deixou confuso. Enquanto levantava a cabeça outrora aninhada sobre seus braços prostrados sobre a mesa, batidas do coração e vibração sob os pés tornaram-se um torturante som de bate-estaca, preenchendo o ambiente e os ouvidos. Ousou abrir os olhos, num hercúleo esforço, para voltar a ser cegado, não por pálpebras, mas pelo neon e pelos flashes estroboscópicos que alucinavam os donos dos corpos dançantes que tomavam o salão. Onde estavam seus amigos ou melhor: onde ele estava que não estavam ali seus amigos? Suas companhias à mesa eram garrafas de uísque vazias, copos sujos e cinzeiros cheios. Faltava ali inclusive a sobriedade que havia se afogado num daqueles copos engordurados. Respirou fundo, enquanto, entre estalos no pescoço e nas costas, punha-se de pé, aspirando sofregamente o oxigênio saturado de alcatrão. Ninguém notou enquanto se esgueirou pelos cantos, apoiando sempre uma das mãos nas parede...

De per si a mim

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No mesmo horário de sempre, num dia que poderia ser qualquer um, fitou-se diante do vidro retrorrecoberto de aço, sobre a pia. Entre esgares e histrionices, tentava reconhecer-se naquele naco de matéria orgânica refletido, que teimava em imitar-lhe os movimentos. Não fosse pelas chispantes órbitas esmeraldas a lhe mesmerizar a percepção, aquelas difusas formas em pouco remontariam indícios de humanidade. Num átimo de paranoia, crispou as mãos que, pela morfologia, apêndices filiformes e dimensões, era análoga a de um primata de milênios idos e fez tilintar cacos de vidro ao chão, alguns deles amortecidos pelo viscoso caldo de hemácias que os precedera. Continuou a fitar o espaço entre os córneres da moldura.  Caprichosamente, uma daquelas hediondas órbitas esmeraldas faiscantes ali permanecia, num escaleno fragmento vítreo, tornando em desespero sua loucura. Tratou de arrancar com as unhas, num ímpeto iroso, o derradeiro lembrete de sua efígie grotesca impresso em engodo naquele re...

A Jornada

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As outras duas pacientes ainda dormiam, quando ela terminou de se vestir. Sentiu dores e desconforto ao calçar suas sandálias gastas, de plástico amarelado, outrora transparente. O corte da cirurgia não doía, mas ainda que que bem suturado, parecia querer romper, a cada movimento que fazia. Olhou em volta, uma das mulheres ao lado acordou e tentou se levantar, mas percebendo o soro aplicado no braço, apenas se acomodou e suspirou, sussurrando um bom dia quase ininteligível e retornando ao torpor da anestesia. Finalmente a enfermeira chegou, apressada, e enquanto recitava recomendações médicas, ajudou a paciente a pôr-se em pé. "Sua sacola, eu levo", disse a profissional, como se aquele saco plástico com algumas peças de roupas sujas fossem um fardo incapacitante à paciente. Empreenderam então sua jornada compartilhada pelas rampas do nosocômio.  A enfermeira ditava o ritmo da caminhada e ambas trocavam monossilábicas expressões sobre uma ou outra observação do arredor. O movi...

Churrasco

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_Ô de casa! Quem diabos, chamaria em minha varanda, às sete da manhã de um sábado, em tempos de pandemia, interrompendo meu necessário isolamento social? Pus a cabeça para fora da janela. Era o Jair. Um pitoresco espírito de porco, que pela contingência de ter convivido infância e adolescência comigo, tornara-se uma espécie de parente indesejado, alguém possuidor de uma consideração afetiva que esmerava em não merecer. _Não vai chamar pra entrar? O desejo era o de atirar o troféu de truco da estante na cabeça do infeliz, mas controlando as emoções, mandei o desalmado ficar sentado ali mesmo, na mureta. _Bora lá em casa fazer churrasco? -propôs o energúmeno - Já tenho carvão e linguiça; você leva carne e cerveja, tá ok? Respirei fundo, resfoleguei, tirando um sorriso demente da face do mala sem alça e o inquiri: "Tá de sacanagem? Seus pais idosos e debilitados moram contigo. Não tem medo que alguém os contamine? Além do mais, dou valor à minha própria vida. Vou ficar quieto no meu ...

Patriarcado

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Desligou o abajur e se recolheu à cama, refúgio de sua rotina ou como preferia imaginar, verdugo dos dias e berço que embalava as noites. E assim como sempre, antes que o sono o abatesse toldando a consciência, começou a desfiar seu rosário de súplicas ao ser supremo. Pediu saúde aos milhões de doentes e esperança aos tantos moribundos que jaziam nos leitos, por todo o mundo. Suplicou pelo fim de todas as guerras e conflitos que dizimavam a humanidade em toda a extensão do planeta. Clamou por todas as panelas, pratos e barrigas vazias que pontuavam invisíveis, a desigualdade entre as gentes. Intercedeu pelas tantas crianças e mulheres abusadas, espancadas e mortas, pelas ruas e dentro das residências, por toda parte. Reservou o fecho para aqueles muitos que não tinham moradia, que eram vítimas de incêndios, tsunamis, vulcões, terremotos, inundações, secas e todas as intempéries naturais que se abatiam sobre os seres viventes. Virou-se de lado, rendendo-se ao peso que cerrava suas pálpe...

Simbiose

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Finalmente ela veio. Aquele cabelo comprido, preso em coque atrás da cabeça, os indefectíveis óculos vintage pontiagudos dos lados, aquele batom vermelho delineando sua boca de forma a torná-la um muxoxo, o vestido justo na medida de quem dedicou parte da existência a caber nele, os modos felinos que não evitavam que as agulhas negras de suas meias patas negras marcassem sua marcha em direção à mesa com ritmados e sonoros passos. Enquanto ela se sentava, com a sempiterna atitude ofendida que usava a título de charme, cumprimentei-a com um "demorou, heim?", devidamente respondido com a saudação "esperou porque quis". Após um entreolhar mútuo ofendido tanto quanto simulado, ela estendeu-lhe o rosto, sendo retribuído com um leve roçar de lábios entre a boca e o queixo, que se contivesse volúpia, bem poderia ser chamado de beijo. Enquanto ele sorvia seu choconhaque, ela pousou sua carteira de mão sobre a mesa e enquanto se olhava no espelhinho para garantir que o cumpri...

Fogo fátuo

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O silêncio, profanado pelo cricrilar vindo da escuridão do terreiro era alvíssara para o que se propôs a executar. Naquele fim de mundo, onde a vizinhança era grandes espaços preenchidos de nada, talvez pudesse se dar ao luxo de permitir gritos, enquanto empreendia sua intenção. Aos conhecidos, estaria na metrópole. Aos que se escandalizariam com o resultado de seu plano, a autoria seria uma incógnita que em nada remontaria a si. Enquanto balouçava na rede, na penumbra profanada pelo luar, observou sua candidata a vítima chegar, caminhando a passos curtos e despreocupados, farfalhando seu longo vestido branco nas pedras do passeio, evocando um espectro, que talvez viesse a se tornar dali a pouco. Conferiu seus instrumentos: corda, faca, pá... Tudo que precisava estava ali, menos a proximidade de sua vítima, o que felizmente para ele, era questão de tempo. Muito pouco tempo por sinal. Decidiu se levantar somente quando ela estivesse à sua frente, ávida por sua atenção, carente de seus f...

Medo

À parte as impressões que provoco, jamais fui corajoso. Sou sim, alguém que, em virtude do medo, não tem outra escolha senão parecer destemido.

Os amantes

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Haviam aproveitado bem aquela hora de almoço. Não fosse pelos cabelos molhados, as vestes amassadas e a fingida formalidade, ninguém suspeitaria de nada. Afinal serenava e perambular por aí era um desafio fatal à elegância. Não fosse também pelo hotel de má reputação defronte ao escritório, talvez houvesse burburinho pela súbita chegada da dupla ao escritório. Mas quem em pleno juízo se arriscaria a amarrotar tão decadentes lençóis? Além do mais, eles sempre traziam balas de menta e distribuíam aos colegas, sempre que voltavam juntos do almoço. Afinal, cúmplices de alcova não costumam incluir mimos a outrem em suas preocupações. Quando passaram pelo contínuo e o escriturário, conseguiram ouvir, em passant: "sérios como esses dois, estou pra ver". Seguiram juntos, impávidos e calados até o fim do corredor, que se bifurcava em duas salas amplas. Antes de adentrarem cada qual seu recinto e retomarem o rumo de seus afazeres, entredentes ele a inquire: "Amanhã, de novo?"...

Kafka

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Acordar sob um estado de espírito kafkiano, sentindo-se como Gregor Samsa, apesar de estranho, não é tão preocupante. Sentir-se vez ou outra como uma barata, um inseto asqueroso e insignificante, está no escopo da angústia existencial tão própria dos seres humanos. O que não tem perdão é ter "sangue de barata".

Lacunas

Na ausência, transbordam presenças, ainda que as lonjuras imponham lacunas.

Átimo

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Momentos que passam, sobrevivência em risco, desafios prementes de átimos do imponderável. A existência flui à revelia das vontades, com destino de final definido, entre capítulos tão insanos quanto improváveis. Hoje são apenas visões através das janelas da percepção; amanhã serão memórias, até que sejam definitivamente esquecidas.

Torpor

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Era um despertar entre os milhares não queridos de uma jornada em que outros tantos ainda ocorreriam. E enquanto a rotina de despacho matinal de um produto humano conveniente à manutenção da estrutura era levada a cabo, a realidade insistia em sinalizar que um dia como os outros, talvez todos, estava em curso. Estacou na soleira. Perguntou-se o porquê de prosseguir. Encontrou mil motivos para isso. Perguntou-se se era o que queria. Respondeu a si que não. E concluiu que as expectativas de outrem eram apelo deveras débeis para que se convencesse que deveria ser um entre bilhões, ao custo de não ser "ele". Cerrou a porta, virou a chave. Largou a mochila ali mesmo e enquanto caminhava de volta ao quarto, deixava um rastro de sapatos, camisa, cinto, meias e quaisquer motivações que se contrapunham ao seu arbítrio. De volta ao quarto, fechou as cortinas, a porta, aninhou-se em lençóis e cerrou os olhos, na vã esperança do advento de um torpor eterno, que fizes...

Acaso certo

Elucubrações sobre o porvir são meras conjecturas que os racionais chamam de planos, os otimistas alcunham de sonhos e os passageiros do acaso as ignoram.

Antígona

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Entre trapos, o andarilho, outrora rei, se consumia em remorsos, traçando erráticas trajetórias, guiado por sua cegueira autoimposta. A ruína preconizava o óbvio ocaso, o fim, que quanto mais distante se avistava, menos esperança concedia à margem de um pretenso alívio que nunca chegaria. Oriunda de suas gônadas, em virtude de seus desatinos, a mão que o conduzia sem saber para onde, era seu único resquício de humanidade. Uma história seria contada a respeito por milênios, como a maldição de reviver a derrocada de quem nasceu como presságio da dor e por um ato de heroísmo foi alçado à glória, mas por obra de seu destino de personagem trágico, vagou como cego, exilado e maltrapilho até o fim de seus dias. O epíteto para a tragédia nominou-se Édipo, mas a candura e dedicação de Antígona, ainda que insuficientes para a redenção de seu genitor, são inspiração para espíritos atormentados sempre terem esperança que os frutos de nossas escolhas poderão um dia nos reservar algum al...