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Sinfonia átona

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Sinfonia átona Enquanto caminhava, ocioso a tentar me libertar do jugo da racionalidade, vi-me absorto em sentimentos, muito mais que em pensamentos. Sentia o sol fustigante a dourar-me o dorso; sons de aves e insetos pondo meus tímpanos a vibrar, o vento, qual um suspiro etéreo a acariciar minha tez; o suor a singrar minha face em micro rios que a um incauto que observasse, poderia se confundir com lágrimas; os pés descalços a oprimir a relva, roçando ervas daninhas à medida em que as foices de meus dedos se moviam adiante.  O silêncio que não havia na natureza era abundante em meu íntimo e nessa sinfonia átona, mais imponente que o maciço pétreo a obstruir o horizonte, urgia a compreensão do que me movia na direção de um qualquer lugar chamado "encontrar-me". Com o mar sereno interior a toldar a percepção da confusa cacofonia do arrabalde distante, o toque de suaves dedos em meu ombro despertou-me com a sutileza de uma hecatombe. Era você.  Encontrei-me enfim.

Quarenta e cinco segundos

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O sol escaldante calcinava meu antebraço esquerdo, enquanto eu freava diante do semáforo em vermelho. E essa cor primária parecia onipresente no meu estado de espírito belicoso, na lataria do meu carro, na brasa do cigarro, na pele do antebraço, na minha conta bancária, na minha gravata, na placa de parada obrigatória, nos meus olhos marejados, no sangue salpicado no asfalto pela carcaça de um cachorro atropelado... Há tempos, levantar era um martírio, trabalhar era um fardo, relacionar-se socialmente era um convite à discórdia e o percurso entre meus afazeres, inoportunos momentos para infindáveis diálogos internos, nos quais peremptoriamente eu era vítima de mim por ser o algoz dos outros. Imerso na contemplação de minhas desventuras, nem percebi quando um maltrapilho aproximou-se da janela e me propôs, quase impondo, um óbolo: "Boa tarde, patrão! Dá um trocado para eu tomar uma pinga?" O turbilhão de meus pensamentos haviam me deixado aéreo. Assim como um mendigo, bem pode...

In tenebris

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In tenebris As costas doem no estrado coberto com palha E o travesseiro envolve nuca e orelhas num puído abraço Na escuridão do cubículo imagino estrelas num firmamento de estuque E os lençóis me protegem do ar encanado das frestas, roçando meu corpo Descobri há tempos que a escuridão é o silêncio que oclude a luz E cada mínimo movimento dos seres notívagos é  convite ao despertar As próximas horas serão minutos se eu dormir Assim como dias, se permanecer desperto Há um passado roto no tecido do tempo, qual trilha que aqui me jazeu Tragando minhas vivências, prometendo um futuro banal Que quando chega, se revela em um presente que nunca passa Em alguma realidade me projeto, sob o torpor do onírico Sonhos que às vezes até esperançam Disputando a primazia do meu íntimo com a aflição dos pesadelos Tragando delícias e tormentos ao limbo de um insípido despertar  Meu derradeiro tônus se entrega ao torpor do cerrar das pálpebras E me despedindo das divagações, do palpável e da rudez...

Senzala

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Uma senzala chamada frente de trabalho Sob um amontoado de palha e gente acordamos E em andrajos seguimos à labuta, sem café nem pão O sol nos fustiga tanto quanto o açoite do linguajar e das chibatas Como que testando a tenacidade de nossa nobreza ancestral Ninguém produz como nós, a um preço tão irrisório Mas nosso salário é o desprezo e a negação da justiça Nosso jantar são restos da casa grande, que sucede o almoço ausente Somos fortes, temos mais sangue do que músculos, mas resistimos À revelia da opressão, cantamos e dançamos, reverenciando o sagrado que há em nós Até que o crepitar da fogueira se esvaia, assim como nossa energia Trazendo penumbra e silêncio ao cativeiro que nos é catre, sonho e alcova Os ciclos garantirão a nós o sofrimento, a exploração e o escárnio Mas nunca nos tirarão a fibra de uma estirpe forjada na beleza de uma história milenar Hoje crispamos nossas mãos sulcadas em arados e enxadas E arrastamos correntes que prendem nossos corpos, mas não o espírito Um ...

Lonjuras

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Lonjuras são passado, não distâncias Este mesmo passado que transforma momentos em lembranças  E distâncias em hiatos de similaridades compartilhadas Até porque momentos também podem ser reencontros E como vivências que são, duram a eternidade das promessas vãs Cedendo ao jugo da nostalgia do que foi fogo e agora é cinza Tornando viço em finitude e as lonjuras, ocaso eterno sob o jugo da saudade.

Alteio

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Num ímpeto determinado, ousou sair da barraca, enquanto os primeiros lampejos da aurora iluminavam o dourado esmaecido da vegetação da cordilheira. Ainda que os alísios gélidos da montanhas teimassem em enregelar seu corpo combalido pela noite insone, prostrado sobre o chão forrado de jornais e mantas de seu iglu artificial, a paisagem que se descortinava era um estímulo e tanto para reacender o fogareiro e requentar o atro líquido que amornaria suas entranhas e despejaria em seu sangue a preciosa cafeína. Aos poucos, o hálito solar dissipava a espessa neblina, desafiando a quão longe os olhos poderiam divisar. À frente, o abismo rochoso transmutava muito abaixo em densas florestas, que se espalhavam densamente por léguas, para então entregar o espaço a pastos, vilas e fazendas.  Mais além, uma extensa represa e no horizonte oposto, outra cordilheira, encimada por nuvens que lhe encobriam os cumes. Um errante cachorro do mato o observava de longe, com as orelhas eretas, confuso ent...

A mata sombria

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A lua cheia precedeu o descerrar do véu noturno, expondo os contrastes do claro-escuro da mata do Córrego da Farinha, que ladeava a estrada de terra. E dentro da surrada camionete que praticamente se arrastava pelo saibro, estalando e fumegando, Faustino, o assustado motorista, maldizia a hora em que aceitara levar as compras do mês para o sitiante que residia no sopé do Morro do Bode Preto. Em circunstâncias normais, às dezenove horas da sexta-feira o motorista encerraria a labuta e iniciaria o gozo de seu descanso de fim de semana, mas como dizer não ao patrão que aturava seus atrasos e eventuais ausências sem demiti-lo, mesmo com a gaveta repleta de currículos? O apreensivo Faustino fixava a visão no foco do farol, evitando olhar para os lados, pois além dos perfis fantasmagóricos que a tênue claridade da lua formava ao penetrar os vãos entre as árvores, a mata trazia o agouro de ser o local de suicídios e desaparecimentos de pessoas, conforme histórias passadas entre gerações e ain...

Êxtase dionisíaco

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O último trago dele coincidiu com o derrame da última gota de vinho na taça dela. Baco já os tinha acolhido, abençoado e agora esconjurado, tal volúpia etílica compartilhada pelos consortes  naquela sacal noite de terça-feira. Ao esgotar o assunto, assim como o combustível engarrafado de seus absurdos, os olhares atravessaram a mesa de plástico branco, chispando convites entre as pálpebras pesadas de um e outra. Em impulsos mútuos se puseram em pé com o apoio da mesa, depois da parede e por fim, do abraço que os esperava com sofreguidão. Como muletas compartilhadas, os corpos rumaram, trôpegos e unidos, para o cubículo que os aguardava com finalidade de alcova. E assim, entre esbarrões na mobília e topadas com as quinas do interminável corredor, deixaram-se prostrar no catre do cubículo, amontoados como fardos jogados ao acaso. A ébria se prostrou de costas, com a saia caprichosamente levantada até o pescoço, deixando vislumbrar um hirsuto caminho de vênus, que como rombuda seta, r...

Divagações sobre fugas

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Às vezes tendemos a imaginar um fugitivo sob o prisma da impropriedade ética, moral ou legal, alguém que pelo infortúnio da causa injusta, tem que dar cabo à sua visibilidade em prol de uma incerteza geográfica que lhe salve pescoço, honra ou até culhões, de um merecido castigo. Mas... E quando a tal "fuga" é de nada, nem ninguém, ou no máximo, de si? Se nada temos a nos ameaçar, de quem ou do que fugimos? Pode não ser propriamente uma fuga.  Pode ser simplesmente o atendimento a um anseio de privacidade, o cansaço ante o jugo do senso comum, a negação de se anular em virtude do premente alheio em detrimento das próprias preferências ou até o direito do exercício da oportunidade de estar na melhor companhia possível, mesmo que esta seja a própria. Divago sobre isso na vivência do que explicito.  Num ambiente onde o caos visual dá lugar à predominância do verde da natureza, o rumor de carros e ruídos urbanos é sobrepujado por murmúrios silvestres, o ribombar da água sobre as p...

Herborismo humano

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Pessoas há como plantas: Algumas, decorativas e inertes, como samambaias; Outras, traiçoeiras como plantas carnívoras; Também há as rosas, com beleza e espinhos; As trepadeiras, que escalam obstáculos, sempre buscando os píncaros de seus limites; As epífitas, que florescem em seguras reentrâncias; As urtigas, que provocam irritação quando tocadas; Ou as parasitas, que sugam a essência de seus hospedeiros. À parte como se mostram ou o que se tornam, todas foram um dia sementes, promessas de viço, beleza ou finalidade e mesmo o determinismo específico de suas naturezas não é capaz de excluir de suas existências um imponderável espontâneo, que só se compreende quando notado na complexidade de seu macrocosmo. Produtos do meio, mas também entes em busca de sua completude, no rumo da seta do tempo, tão fractais em sua existência e tão óbvios no desfecho de sua decrepitude.

Conluio cênico

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Ali estávamos de novo naquele pardieiro decadente que talvez em priscas eras, honrasse o nome "Le Jardin", ostentado em neon na fachada carcomida pelo tempo, clima e poluição. E mais uma vez, no constrangimento habitual de um Casanova falido, convidei-a a ir até a janela e contemplar a vista do centro da metrópole, truque manjado para desviar a atenção dos móveis velhos, espelhos borrados e torneiras enferrujadas daquele matadouro de expectativas românticas. Enquanto despia meus andrajos, fitei a silhueta nua, esguia, apoiada num dos pés, braços apoiados no batente da janela, com costas, nádegas e pernas ocultas pela penumbra do quarto, mas os seios, ventre e o rosto emoldurado com cachos de medusa expostos à luz do poste em frente, ao alcance da vista de algum sortudo que por ventura olhasse para cima. Ela sabia muito bem que tipo de impressão me causava quando, fingindo indiferença e olhando para o nada,, acendia um cigarro e trocava de pé de apoio, fazendo aquelas nádegas ...

Sonhos e Ilusões

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Trouxe a mim o desejo como sonho E como sonho, a idealização se amalgamou Como dádiva onírica de um amor platônico Que incendeia alcovas, sob as bênçãos de um súcubo Não me fere a adaga da fatídica impossibilidade Visto o mel da esperança sobrepor o fel da realidade Das histórias que vivi, devaneios, à orla do ocorrido Acesa a volúpia, escrava da imaginação Se me quiseres, fiques longe, te suplico Não me dês o afago que arrepia a tez Ou o roçar de corpos que nos torne lascivos Não tome da impossibilidade a primazia da certeza E te imploro, detentora de minha essência Não profanes com amor o sentimento que lhe devoto.

Sobre amor e livros

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Amor e livros No passadiço entre os prédios, recostados no parapeito, cada qual defronte ao outro, tergiversavam na modorra de um sábado qualquer: _Você me fez sair da perifa para vir aqui contemplar aço, concreto, vidro e vãos? _Na verdade, se você atentasse para as filigranas da paisagem, nos vértices, quinas, junções, contrastes, perspectivas, desníveis, transparências e na melancolia dos monotons, já valeria a pena. Mas estou aqui. Pensei que bastaria para te instigar. _Sabe o que é? De repente você gerou uma expectativa diferente quando me chamou para o rolê. Pensei que seria uma festa, uma feira, uma balada... Mas pensando bem, se não viesse, não estaria te dando a chance de ser mais interessante do que ficar em casa com meus gatos, assistindo "O Mágico de Oz" pela centésima vez. _Aí você está querendo demais! Quem nesse mundo seria melhor companhia que os gatos e Dorothy? E como rivalizar os prédios de Kogan e Weinfeld com a estrada de tijolos amarelos? Aí fica difícil...

Partida e chegada

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Partida e chegada Meses se passaram desde a última carta respondida. E a distância física entre eles só não era maior que os prolíficos diálogos entremeados pelo passar das semanas, que pontuavam emoções e sentimentos recíprocos, trocados através do rodeio dos bicos de penas que espalhavam o escasso nanquim nas faces dos papeis de palha. Anos se passaram, desde que Rúbia e sua família singraram o sertão em carroças e lombos de burros, na esperança de permutar com o destino,  miséria por trabalho. Quando da partida, Ataíde continha as lágrimas em olhos marejados, com um sentimento de perda que ignorava ainda a saudade, mas sem noção do deserto que se abriria no latifúndio de seu coração. Rúbia, envolta em chitão e brim puído, do lombo do muar, quando na iminência da silhueta de Ataíde sumir na lonjura, acenou vigorosamente, tendo como resposta a seu gesto, um virar de costas, com a cabeça baixa, seguido do arrastar de pés pelo terreiro, rumo ao casebre que o abrigava com a mãe idosa...

Jardim do Tempo

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Jardim do tempo  Um tênue mormaço aquecia as costas do encimesmado ancião, enquanto este, com as mãos nuas, remexia substrato, terra e esterco nas raízes dos lírios no jardim. Um discreto olor de lavanda disputava os sentidos do velho com o zumbido das abelhas, que por sua vez, desenhavam ômegas invisíveis pelo arrabalde, numa labuta incessante e alheia à distante cacofonia do subúrbio. As memórias, companheiras fieis do idoso, sequestraram suas sinapses, transmutando emoções joviais em sentimentos difusos, quase lhe fugindo pelos olhos, pela impossibilidade de serem revividas. E por mais que o tempo futuro fosse cada vez menor frente ao passado que insistia em ser lembrado, uma persistente e intrigante sensação de incompletude lhe mantinha a tenacidade em persistir na existência. Gotas de suor se juntavam em filetes, prescrutando a larga testa, descendo aos lábios ressequidos, não sem antes misturar-se a tímidas lágrimas, precipitando ao solo,  brindando as flores com sal, ág...

Travessa Maturidade

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O sol luzia no firmamento, tanto quanto em seus rostos vincados pelas agruras da marcha inexorável do tempo. E os reflexos no granito do pavimento mostravam o caminho a seguir, sempre no rumo dos lampejos. O grisalho de seus cabelos prateavam a aragem que os revolviam, quais brilhos de estrelas que fulgiam em miríades. As mãos cansadas que seguravam o guidão, mais se apoiavam nele que o seguravam, mas eram suficientes para manter o equilíbrio do casal. As pernas e pés esquálidos, expostos por bermudas e chinelas, percorriam ciclos nos pedais e pedivelas, dando rumo à intenção de ambos, alheios às gentes, carros e casas que os ladeavam. Na garupa, os graciosos trejeitos de uma dama extasiada com o vento que acariciava sua tez cansada, contratavam com os puidos panos que a trajavam, trazendo em tons pasteis, um encanto próprio dos quadros de Degas. Quisera um pedregulho se interpor entre o caminho e o biciclo, furtando do casal o equilíbrio, lançando-os ao canteiro, onde um arbusto os ac...

Naufrágio

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Ele a fitava, olhando para o mar. _Quero ter-te de novo. Você me conhece e sabe do meu desejo - disse-lhe ela. _Você é perfeita demais para que alguém diga que te merece, ainda que quem diga seja você mesma. E isso não é ruim, apenas significa que você é mar revolto e sou uma jangada - ele respondeu. _Então imerja em mim; seja o naufrágio que acolherei nas profundezas do mar de lágrimas que minha saudade criou. _Ao risco dos vagalhões levarem os destroços do meu ser a praias que não sejam seus braços, para que a areia de seus litorais profanem o que nasceu para ser seu?  _O risco da perda daquilo que pode ser meu, vale um instante que seja de seu singrar em minha superfície ávida dos carinhos de sua proa. Capitaneia-me, meu marujo. E num mergulhar de cabeça, abandonando a frágil segurança da madeira sob seus pés, ele se atirou nos braços de sua sereia, qual tritão em volúpia, ressurreto em forma e essência, compartilhando sua verdadeira natureza com o par há muito desgarrado. E num...

Provação

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Na sala de espera, o som ambiente da TV sintonizada em um programa de culinária se misturava a gemidos, expectorações, espirros, choro de crianças, arrastar de chinelas, mexericos venais e o sinal sonoro que apitava sempre que os números das senhas mudavam no painel de led. Impressa num papel colado na parede de azulejos brancos, a efigie de uma enfermeira com o dedo indicador ereto sobre os lábios encimava a palavra "silêncio", que confrontada ao burburinho e à cacofonia do lugar, deixava dúvidas se estava advertindo os presentes ou zombando da situação. Alheio ao furdunço e esperançoso de que fosse chamado à consulta em menos tempo do que a hora e meia que havia se passado desde sua chegada, o dono da senha número dezenove perdia gradativamente ao pouco de serenidade que o fatalismo da demora o havia investido, fazendo-o suar em bicas, seguindo de tremores em suas mãos frias. Uma criança de uns três anos insistia em lhe puxar os cadarços e nem mesmo o olhar de desaprovação ...

Malleus Maleficarum

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Os raios de sol da manhã irromperam pelo quadrículo gradeado de sua única janela, iluminando sua tez alva e imunda, de uma paradoxal contradição entre beleza e descuido. Seus cabelos negros, longos e desgrenhados, emaranhados entre lêndeas e forragem, emolduravam sua face cadavérica, encimada em um corpo esquálido, coberto por uma esgarçada túnica branca e encardida, que mais expunha suas vergonhas do que as ocultava. Ao contrário dos desjejuns dos últimos seis meses, o que foi deixado num entreabrir e cerrar da grossa porta era análogo a um régio banquete e o porquê de tal deferência ela conseguia aos poucos discernir. Tornou sua atenção àquela nesga de luz solar que iluminava um céu de azul anilado, em contraste com a penumbra do cômodo infecto em que habitava e pôde ouvir um crescente crepitar enquanto o burburinho dos aldeões parecia denotar um frenesi próprio de grandes acontecimentos. Não tocou na comida, não por soberba ou fastio, mas tomada pela apatia de quem há muito desdenha...

Outonal labuta

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Era mais uma manhã de outono, com a óbvia pasmaceira que acometia os dias que se interpunham entre os equinócios. Despertar na mesma cama, para sorver o mesmo café de cada dia, ouvindo as mesmas pequenas tragédias do cotidiano sendo grasnadas por indivíduos engravatados confinados em telas de led, esforçando-se para dar ares de novidade ao tecido de obviedades cerzido pela rotina de absurdos que compõem a vida das formigas humanas, em nada representava algum tipo de motivação que lhe sequestrasse do enfado. Em poucos minutos teria de estar em um coletivo abarrotado de proletários oprimidos pela vida, esfregando-se uns aos outros, tossindo, espirrando, dormindo, tagarelando, cada qual cumprindo seu roteiro de engrenagens puídas, no aguardo de compartilharem ferrugem quando enfim, estivessem encaixadas e girando na gigantesca máquina de moer gente chamada labuta, onde os poucos momentos em que se sentiriam humanos eram quando estivessem comendo ou defecando entre um toque de sirene e out...

Efemeridade

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Momentos que passam, sobrevivência em risco, desafios prementes de átimos do imponderável. A existência flui à revelia das vontades, com destino de final definido, entre capítulos tão insanos quanto improváveis. Hoje são apenas visões através das janelas da percepção; amanhã serão memórias, até que sejam definitivamente esquecidas.

A reunião

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O silêncio de sua mente contrastava com o cacofônico alarido advindo da mesa redonda executada naquela távola quadrada.  E subitamente desperto, espantou-se com o quão pouco pode ser dito em tanto desperdício de vocábulos esparsos. Num magnífico esforço cognitivo, empenhou-se em concatenar as frases proferidas com a errática pertinência do arbítrio de quem as dizia, em franca dissonância com a atenção de outrem, a qual contraditoriamente, inexistia. Pensava no que urgiam suas demandas, na lógica que faltava no fato de prostrar-se, obediente e anímico, sobre aquele móvel quadrangulado, como se tudo que lhe conviesse fossem filigranas de irrelevância face ao jugo da burocracia. Antes que o juízo das circunstâncias alheias se submetesse à própria gênese, a estridência da sirene rasgou-lhe o véu do torpor da semiconsciência com a higiênica panaceia libertadora da célere marcha dos cronógrafos que lhe anunciava novas obrigações.  Levantou-se de súbito e caminhou solerte no rumo da ...

Imanente risco

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Que meu silêncio ribombe em significado;  Que minha inércia seja fértil à transformação;  Que persista o essencial no âmago do caos;  Que o destino certo não sucumba à calmaria e que eu tenha maturidade para não culpar os ventos quando escolher adentrar as tempestades. Que meu silêncio ribombe em significado;  Que minha inércia seja fértil à transformação;  Que persista o essencial no âmago do caos;  Que o destino certo não sucumba à calmaria e que eu tenha maturidade para não culpar os ventos quando escolher adentrar as tempestades. Que meu silêncio ribombe em significado;  Que minha inércia seja fértil à transformação;  Que persista o essencial no âmago do caos;  Que o destino certo não sucumba à calmaria e que eu tenha maturidade para não culpar os ventos quando escolher adentrar as tempestades.

Natalicídio

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Quisera um anjo ter-lhe oferecido a dádiva de um rebento que fosse querido e predestinado a grandes feitos, mas sua prenhez era fruto de uma violência a qual não pôde se defender. E naquela noite da véspera de Natal, suas contrações doíam menos que o medo do porvir. Na fria calçada da estação ferroviária, o papelão era sua cama e a solidão, sua companhia. A resposta a seus gemidos eram os ecos que ouvia, abafados pelo ruído das grossas gotas de chuva que precipitavam do éter. Não havia mãos a ajudar senão as suas e na impossibilidade de se despir, rasgou num átimo seus andrajos, abrindo caminho para quem haveria de conhecer em muito breve, a fria atmosfera de um dia chuvoso e a gélida indiferença de uma sociedade apodrecida. O papelão embaixo de si, encharcado de chuva e líquido amniótico, tingia-se de um rosa, que aos poucos tornava ao vermelho. As pernas sujas e esqueléticas se abriram, enquanto o esquálido torso se apoiava para trás sob braços finos, com múltiplas perfurações supura...

Evoé

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           Noites escritas em letras e vinho          Ocultas do luar por paredes e teto          Povoadas por amantes, brindadas a Baco          Com corpos nus, na cúmplice busca do gozo          Ao sabor um do outro, pele, mucosas, dentes e línguas          Numa dança lúbrica, entre contrações e gemidos          E pelas frestas da persiana, invasivos e reveladores          Fiapos de luz banham os dorsos suados com invejoso luar          Como fustigados fossem por Selene, em triste solidão          Pelo pecado do êxtase que teimavam em ostentar          Entre idas e vindas, dentro e fora de si, em corpos e sentidos          Qual siameses com a promessa de uma infinitude efêmera  ...

Campo-santo

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Uma silhueta encapuzada surgiu de relance, vinda do arvoredo. Seu vestido púrpura, de longas bainhas de renda negra, escondia os pés que o conduziam, farfalhando ao roçar as folhas secas, dando a impressão que a aparição de tons ígneos flutuava pela noite de pleno luar. A ambiência do sepulcrário, invadido pela batalha, compunha-se do som de espadas percutindo carne, ossos e metais, tochas flamejando e  imprecações que sucediam lamentos de agonia, que foram cessando à medida em que o assombro crescia, catalisado pela visão da rubra silhueta. Como que zumbificados, invasores e moradores largaram suas armas e caminharam, trôpegos e ofegantes, em direção ao espectro escarlate. As carcaças mutiladas, prostradas e besuntadas em sangue, mesmo despidas do élan vital, arrastavam-se atrás dos vivos, preenchendo a atmosfera com ulos fantasmagóricos e nauseabundo odor de morte. Aos poucos, mortos e vivos circundaram a aparição, formando um cerco estático, como um assédio ao vulto carmesim. Um...

Fome

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Após pagar a passagem no guichê, seus bolsos ficaram tão vazios quanto o bucho que roncava. E a volta e meia no relógio que faltava para seu embarque era promessa de um martírio famélico portentoso, até que pudesse recostar na poltrona do busão e dormir por todo percurso para não se lembrar do vácuo no abdômen, onde havia mais costelas que gordura. A fome fazia com que a cabeça não funcionasse direito. Tinha momentos de ausência, onde pensamentos esdrúxulos escanteavam a razão e a percepção da realidade. Num desses arroubos de insensatez,  imaginava-se um modelo fotográfico ou manequim de desfile trajado com o fino da moda, circundado de ávidos olhares femininos, cheiroso e limpo, no limiar de fartar-se de acepipes num desses restaurantes de luxo, que só sabia da existência por ter folheado uma revista de fofocas enquanto se aliviava numa das privadas nauseabundas da rodoviária. O delírio foi abruptamente dissipado por mais um agonizante rugido de suas aéreas entranhas. Decidiu and...

Café e Cevada

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Em uma manhã de segunda-feira, na padaria de sempre, os colegas se encontram antes de iniciar o batente. _Passe o açúcar. De amarga basta a vida, quanto mais café. _Ficou louco? Você é diabético.  _E essa cerveja aí, às sete da manhã? Também mata e é amarga como café sem açúcar. _Amigo, não sou mais casado justamente porque não gosto que deem pitaco nos meus gostos. E olha que minha ex-mulher tinha xana. Você, nem isso. _Coleguinha, você que me encheu o raio do saco quando te pedi o açúcar. Está explicado porque a gostosa da sua ex-mulher te trocou pelo ascensorista. Você é chato demais. _Bicho, perder mulher pra ascensorista pouco me afeta. Triste seria perdê-la para um folgado que não presta nem para adoçar o café sozinho. _Você não precisa de mim para ser corno, brother. Basta arranjar uma mulher e esperar o dia seguinte para ela te trocar pelo primeiro cara que cruzasse o caminho, não por escolha, mas por necessidade. _Pode até ser, mas pelo menos eu não sou um inútil que preci...

De Profundis

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Enviezados seguem os passos descuidados A conduzir, trôpego, o timoneiro da esperança perdida Por mais que das tormentas advenha a bonança O fado vil, como carma, transmuta ouro em flandres Das promessas, agouros frustram a fortuna Tornando em óbolos as conquistas imerecidas Consumindo a essência, o âmago é o que resta Desnudando ao roto a alma em frangalhos Augúrios tardios da outrora quimera Lívida agora, conquanto esvanecida Até que o gozo seja apenas nostalgia.

Original Pecado

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Eu era Adão, despertando com o gosto de maçã na língua cansada das notívagas incursões naquele corpo ainda adormecido, prostrado no torpor do deleite. E a perdição, ainda  prostrada em lençóis, ressonava qual felina, desafiando sua face a expressar alguma sensação que não fosse sereno contentamento. A fresta na janela deixava perpassar um fio de luz, qual holofote, que à medida em que profanava o templo de minha volúpia, revelava convidativas nádegas, despudoradamente expostas pelo capricho de um cobertor amarfalhado. Os cabelos bagunçados, qual ráfia desfiada, acortinando com grandes rasgos aquela tez acetinada, que circundava carnudos e carminados lábios, entreabertos, quase num convite involuntário à luxúria. Seus olhos se entreabriram, confrontando meu olhar, para então me brindar com uma piscadela. Despiu seu semissorriso onírico, mordiscando o lábio inferior, num desafio explícito à minha libido, ao qual servilmente retribuí com uma ereção. E num átimo de consciência, ao cede...

Depressão pós-coito

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Findo o êxtase, as impressões. E o silêncio ofegante era o abecedário que continha mágoas suplantadas pelo êxtase que ainda teimava em subsistir, ignorando a letargia que se apossava dos corpos por si consumidos num embate mútuo a favor de ambos. O script era o mesmo de sempre: idas plenas de autoestima inflada pela ocitocina e hiatos de presença pelas impossibilidades sociais compartilhadas, seguidas por reencontros famintos, onde o imponderável era escravo do inexorável. Como todo ciclo, em seus meandros, as particularidades do relacionamento, se é que assim pode ser descrito, descreviam parábolas, paralelas e tangentes, envolvendo terceiros, aspirações não contempladas, ligações não atendidas, ciúmes contidos, porres terapêuticos e promessas de ruptura jamais levadas a termo. E assim passaram-se anos. Décadas... E mais uma vez prostrados entre braços e pernas entrelaçados, nos lençóis maculados de secreções, refletidos no teto por um espelho inquisidor, a reflexão era a mesma: Tudo ...

Travessia

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Perdi-me em ti, buscando a mim E nas veredas do engano, atalho não havia E nos atalhos que escolhi, quão longe me vi Marcando passos em dores, nos espinhos que escolhi Pés descalços, em estrepes cingidos, sangram sem singrar Os caminhos percorridos, cujo fado é fatigar A vontade outrora férrea, em lamentos vir tornar Como fosse certo o deleite, sem por isso pelejar Sob o jugo do que sinto, a razão é cativa E nem dos andrajos, o sangue, a lágrima e o suor Doem tanto quanto a ausência Finda a jornada, o destino atingi Achei-me em mim; perdi a ti.

Oco

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Preenchi-me com o vazio e ocupei espaços com nada O vácuo persistiu, o oco ganhou contornos E em tudo que persistiu O inexistir se fez querer Tornando em plasma que consumia A matéria tornada refugo.

Efêmero

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As horas seguem céleres, inexoráveis marcadores de um repouso nunca suficiente. Mas aos que, despertos pela angústia, percorrem a órbita do relógio em ciclos completos e intermináveis, os segundos se tornam horas. E aos cadáveres, também os viventes, de pouco adiantará estarem os olhos abertos ou cerrados Pois de cada fado, viver ou fenecer, jamais serão libertos do fatídico porvir.

Excertos erráticos

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Quintana ou Victor Hugo decantariam a melancolia como a tristeza romantizada ou até uma espécie de contentamento em estar triste, mas o fato é que alguém estava sentindo algo que os clássicos vetustos talvez tivessem melhor definido que vivenciado. Já há duas semanas, o burburinho das repartições, o alarido dos comércios, a cacofonia dos sentimentos haviam cedido espaço em sua vida para um estupor inicial, que aos poucos tornava-se em tédio e agora tingia de sépia o mundo, as sensações, as vontades e os seres cada vez mais ausentes e distantes, essas imprevisíveis criaturas, as pessoas. Viver em quarentena deveria ser a antítese de morrer no habitat amplo, mas o óbito das possibilidades, a certeza do distanciamento e o inexorável do imponderável traziam à consciência um torpor que se insurgia contra a esperança, na medida de um mar que circunda um náufrago. No limbo de sua abulia, fomentava devaneios, que invariavelmente eram suplantados em urgência por dilemas relacionados à subsistên...

Urgente!

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Sobre urgência, postergações, procrastinações e afins: Só quem tem o irresistível impulso de deixar para amanhã aquilo que deveria ter sido feito ontem pode entender a vontade que estou de postergar para algum outro dia, aquilo que me propus escrever agora nestas mal traçadas linhas virtuais. Afinal de contas, perceba:  À parte os casos de vida ou morte, tudo o mais que mereça a alcunha de urgente obedece ao crivo das pertinências de outrem, com as devidas menções aos autoritários, mimados, impacientes, intermediários da burocracia e demais corruptelas da premência, que nos fustigam cotidianamente com suas sempre inadiáveis demandas. Quem nunca recebeu uma ordem superior quanto a alguma tarefa "urgente", que ao nos consumir competência, preocupação, articulações pessoais e horas de trabalho, às vezes às custas do descanso e do lazer de direito, teve seu primor de resultado engavetado para a posteridade ou esquecido sobre alguma empoeirada escrivaninha por aí? Pior:  E quando ...

Ludum Vivere

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Era um prédio erigido em juscelinas eras. Não tinha o ar vetusto das construções seculares que persistiam em abrigar estabelecimentos por aquelas plagas e as grades que o circundavam lhe conferiam uma aura de austeridade que oprimia mais a percepção de quem observava do que aquele que o habitava. Esta arquitetura peculiar abrigava a mais variada fauna pedagógica:  Sisudos bastiões de uma permanentemente afrontada dignidade docente; Simpáticas senhorinhas de conservadores modos a desfilar por passadiços, sempre abraçadas a livros, cadernos e calhamaços de almaços;  Púberes aprendizes, alguns insolentes, outros em sincero esforço em aprender e um sobejo apenas pondo em prática o que não aprenderam em casa e cujos pais delegaram à estrutura a responsabilidade que lhes cabiam;  Adolescentes em joculares vestes, cortes de cabelo esdrúxulos e trejeitos estereotipados que não os definiam, porém os identificavam com as respectivas vertentes estéticas em voga;  Onipresentes b...

Eu, invisível

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Acordei invisível. Não descobri de imediato, pois a escuridão que salvaguardara meu sono fazia com que tudo no quarto também parecesse invisível. Dei-me conta da minha invisibilidade somente ao olhar o espelho, enquanto abria a gaveta do gabinete para pegar a escova de dentes. Surpreendi-me mais com a naturalidade com que me descobri invisível do que com a estranha imagem de um pijama ereto e vazio no reflexo e enquanto me divertia em ver a escova e a espuma do dentifrício flutuando em obediência à escovação, comecei a avaliar as possibilidades oferecidas por existir e não ser visto. Decidi abdicar das roupas para perambular incólume por aí e uma estranha sensação de liberdade e culpa passou a me acometer a partir do momento em que abri a porta e saí para a rua. O estranhamento à minha condição era alimentado por uma desorientação incômoda, pois não vislumbrava meus pés, mãos, nada que em mim auxiliasse a evitar que enquanto andasse, pisasse em falso ou esbarrase nos anteparos do camin...