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En passant

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Era início de noite de um fim de mês de agosto fustigado pelo alísio hálito de uma atmosfera taciturna, que concedia ao clima a primazia de enregelar minhas orelhas, numa conveniente distração ao acachapante sentimento de marasmo que insistia em me acompanhar todas as vezes em que eu subia a ladeira da viela do subúrbio, após outra segunda-feira de labuta. O sereno bailava errante, fazendo-se de prisma quando revelado pelo vapor de mercúrio das luminárias que ladeavam a escadaria, permitindo um lapso contemplativo enquanto eu contava mais uma vez os degraus, um por um, no rumo do refúgio que me acolheria na característica modorra do subúrbio. Encostados na parede, junto à folha dupla de flandres rebitada que fazia as vezes de porta de entrada da minha morada, lá estavam de novo os adolescentes da periferia, imberbes, belos, irresponsáveis, autoconfiantes na medida do acinte, mas que se postos sob o jugo do futuro imponderável, emanavam a fragilidade daqueles que se permitem sorrir enqu...

Presságio (Haicai 3)

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Vi augúrios Auspícios vindouros Findar agouros

Rubro remorso

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Otávio tinha tudo o que queria na vida.  Era rico, popular, relativamente jovem, saudável, bem apessoado, tinha uma bela esposa chamada Serena, e dois filhos maravilhosos.  Mas a Otávio, a bonança era insuficiente para preencher seu vazio existencial e volta e meia, pensamentos libertinos lhe assaltavam a mente. E nessas horas, geralmente quando se privava dos afazeres e ficava sozinho em claustrofóbicos diálogos internos, urdia tramas em que subvertia sua imagem ilibada de cidadão exemplar e dava vazão, ainda que em devaneios, a uma faceta desordeira, lasciva e dissimulada de sua natureza. Com o passar do tempo, foi desenvolvendo uma súbita fixação por conteúdos violentos dos noticiários da mídia e por obras literárias de temática sombria, das quais as de Edgar Allan Poe, Aleister Crowley e H. P. Lovecraft eram as mais recorrentemente visitadas. Dos devaneios às referências e das sombras de seu espírito há muito reprimidas, uma tragédia pessoal se precipitou como hecatombe so...

Parnaso

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Sob o manto frio da indiferente fleuma, O castigo vagueia e a morte conspira, Na penumbra dos dias, minha sina prevalece, Esvaindo o alento nas areias da ampulheta O fado desdito a mim relegado De engodos gozosos se fez vereda, Ao poeta insano que vagueia ao léu  Das escarpas abissais de uma alma perdida. Nas veias lateja a volúpia excruciante, De rostos e corpos que singram meu ser, E em rotos versos, maldito me retrato, À cupidez dos algozes, meu banquete de fel. Bruxuleia a centelha, luz mortiça de meu ser Alumiando com sombras minha essência Detentora da solitude na prescruta de abrigo, Na sublime culpa da paixão levada a termo A cálida razão, qual fera acorrentada, Meus desatinos recrimina, qual brida me cerceia E de júbilo e lágrimas num embate desigual Minha sina transcende, de augúrio a epitáfio. Ah, destino! Indiferente algoz Deste tolo bardo de coração maltrapilho  A consequência é aguilhão que me trespassa o peito, Para que a dor me acalente com seus braços de impos...

Ébrio fortuito

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  Eu estava na fila do banco, esperando para pagar um boleto vencido, com os míseros trocados que ainda julgava ter na conta. Era uma segunda-feira cinzenta, minha boca estava seca e a cabeça explodindo em uma enxaqueca daquelas. Na minha frente, uma matrona mal-humorada reclamava de tudo. Atrás de mim, um sujeito de terno e gravata, com uma bíblia a tiracolo, bradava ao celular sem parar, como se estivesse num púlpito. Eu suava em bicas, só pensava em pagar minha dívida e sair dali o mais rápido possível. Quando finalmente chegou minha vez, fui até o caixa e entreguei meu cartão e o boleto. O cara olhou para mim com cara de nojo, digitou alguma coisa no computador, depois me devolveu o cartão e disse, num irritante tom monocórdio: _Desculpe, senhor, mas o seu saldo é insuficiente. _Como assim? - perguntei, entre incrédulo e cínico. _O senhor tem apenas dois reais e quarenta e três centavos na conta. _Isso é impossível! Tinha pelo menos cem reais ontem! _Talvez o senhor tenha feito...

Quatro cantos

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                                 I Na dúvida imerso, em gestos e olhares Ocultos na penumbra, de luz e pensamentos Carícias, palavras, sentimentos e más intenções Decretam a capitulação da razão à volúpia.                                  II No Olimpo do desejo, a virtude é esguia Desvelando segredos tornados fetiches Sob as bênçãos de Baco, cortejando Diana Brindando o pomo de Adão ao monte de Vênus                                  III Corpos se consomem, em luxúria imolados Percutindo mãos, em portentosas carnes E unhas riscando poemas erráticos Em peles suadas, quais páginas borradas                                  IV O élan se esvai ante o advento ...

Fissuras

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Cirzo fios de mágoas nos rombos das paredes Do abstrato calabouço dos sonhos irrealizados De frios tijolos irreais, tecidos de árida nostalgia  Sem dedais que me protejam da torpe agulha das intenções natimortas E teço bordados de arame farpado  Na rude superfície de sentimentos chapiscados Emoldurando a clausura com a aridez da concretude Concedendo o zarcão à ferrugem de minhas correntes  De fio a novelo, as vivências se emaranham Em retinto atro que nos tolda o arbítrio Furtando das cores a primazia das palhetas Tingindo de cinza os rubros matizes das paixões De alcova a calabouço A culpa maculou o êxtase E a utopia que virou martírio Fez do engodo, cadafalso Urdindo delírios, aplaco meu tormento Costurando paredes, quais cabais infortúnios Até que minha sina substitua o labor Pela alvissareira dádiva da inexistência.

Catarse

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O sereno da noite da metrópole fulgia em prismas nas gotículas que ungiam sua cabeça, brincando com luz do poste, bruxuleando errantes, até se unirem em filetes que desaguavam em seu rosto, misturando chuva e lágrimas, quais como rio e mar, num torvelinho de emoções impressas no rosto crispado do donatário de um coração partido. O vento da madrugada era açoite, lutando contra o gélido concreto, disputando com as intempéries a primazia da pungência sobre a carne fustigada que abrigava um espírito quebrado. O atro firmamento se escondia atrás de espessas nuvens, negando aos viventes o deleite da lua cheia sequestrada, como que conspirando por um cenário de tristeza e melancolia. O rugido dos carros, que renteavam de forma ameaçadora as pernas prostradas na via, era vez ou outra suplantado por buzinadas esparsas e ofensas disparadas por condutores alheios ao desencanto humano tornado obstáculo viário. Alheio a tudo que não fosse sofrimento, o pretenso algoz de si levantou-se, fitando o ab...

Orgasmatório

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  No leito ebúrneo e cálido, em noites brumas Ao fulgor dos desejos, em êxtase cativos Num balé de corpos febris, ao léu das paixões Perscrutando recônditos, lares de flamantes desejos. Teu hálito que me incendeia o falo Desnuda intenções levadas a termo, E mãos que se misturam em regozijo Enredam-se cúmplices, em mútuo deleite. De teus lábios, sequestrados à luxúria Lúbricos gemidos me condenam ao gozo Quando as idas e vindas ao palato Transbordam em jorro o inevitável clímax. Do idílio espocam os sentidos, em ígneos matizes E num suspiro extasiado, almas plenas se aquietam Sublimando o cio, cedendo ao torpor do sentimento Aninhando Eros no colo, para um súcubo ninar. Já não há suspiros e devassos gemidos Pois nossos corpos só dançavam em meus devaneios No compasso frenético que só o amor concebe Em versos soltos de fantasia nos poemas de um sonhador solitário.

Triângulo imperfeito

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  Na distração habitual de um passeio fortuito, meu olhar distraído foi capturado pela silhueta que me singrou o rumo, furtando minha atenção. Sabendo da iminência de minha perdição, ousei mirar os olhos que, ao arrepio da prudência, fitavam descaradamente os meus. Por um instante, ambos ignoramos o braço que enlaçava o gracioso cós da pretérita ninfa e que a retinha cativa ao corpanzil de ogras formas de seu indesejado acompanhante. Como fosse coreografia de um balé farsesco, nossa atenção convergiu temor e constrangimento às feições do golias ressurreto. Pensei e temi qual seria sua reação diante de tão confesso e imperdoável acinte? Empinando o nariz com altivez, estufei o peito numa profunda inspiração, prevendo a reação do orc ofendido. Enquanto eu decidia pela dissimulação ou pelas desculpas, o casal veio a mim. E antes que eu pudesse verbalizar um cumprimento, o Quasímodo, como num desajeitado passo de tango, abraçou sua Esmeralda e a impôs um torturante e roubado beijo. No...

Noir

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  Erik Satie dedilhava Gymnopédie em algum piano num passado distante, e num capricho da tecnologia, os delicados acordes vinham do lado de fora da janela e preenchiam os espaços da sala escura e vazia, onde jazia minha carcaça ouvinte, ali, no chão, sobre uma esteira puída de vime, acompanhado de uma garrafa de vinho pérgola barato, consumida pela metade. Recomeços são melancólicos, muito mais que alvissareiros, e no limiar entre a meia-idade e a velhice, esta verdade soava como dogma. O caminhão da mudança só chegaria amanhã, e aquela esteira finíssima que estabelecia a fronteira entre meu corpo combalido e as tábuas corridas do assoalho dava sinais de que não forneceria nenhum conforto para a noite que se prometia insone. A penumbra do quarto era profanada por chistes de neon fugidios, vindos do letreiro do hotel do outro lado da rua, que bruxuleavam em fractais no chão e nas paredes, dando àquele vazio de objetos e ânimo, uma psicodélica impressão de desalento. À medida em que...

Epitáfio marginal

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  Acelero mais uma vez nesta avenida que parece não ter fim. O sol do poente me cega, enquanto gotas de suor se misturam às lágrimas que insistem em não cair. A cacofonia vinda das calçadas urra aos meus ouvidos, mas o que escuto é o matraquear dos diálogos internos na minha mente. O caminho que trilho insiste em me perseguir a cada olhada no retrovisor e os prédios à frente parecem correr em minha direção para me esmagar, enquanto continuo acelerando. Há quatro lugares vazios no carro, mas o miasma da multidão que já os ocupou ainda persiste em me fazer companhia. O ocaso se torna noite, toldando a visão e aguçando a sede de viver, que por falta de fastio, é mero apego a uma persistente agonia, novo nome de uma defunta chamada esperança. E é assim, fugindo de meus diálogos internos, da multidão que me assombra, dos infinitos olhos dos edifícios que me cercam, dos caminhos que insistem em se tornar precipícios e dos espelhos que me negam reflexos e entregam zombarias, virei à direi...

Playground

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  Com a xícara nas mãos e a cigarrilha nos lábios, peguei aleatoriamente um dos tomos da prateleira. Conferi o título: Iluminuras. Parecia o dia perfeito para expor Rimbaud ao crivo do meu mau humor matinal, ainda que me sentir um coelho entre campânulas rogando preces ao arco-íris estivesse bem aquém do meu contumaz azedume. Minhas mãos trêmulas nunca foram boas cúmplices de minhas intenções e enquanto meus neurônios tentavam articular esforços para administrar em conjunto nicotina, cafeína e celulose, consegui incendiar o robe com a cigarrilha, para logo em seguida encharcá-lo de café. Menos mal que o Rimbaud sobreviveu ileso ao abrigo da mão esquerda, enquanto a direita fazia-me o obséquio de lançar fora do corpo aquele tecido amarfalhado, queimado, ensopado e pleno do bodum característico de vestuário muito usado e pouco lavado. Enquanto me vestia, lancei olhar àquele livro, um dos muitos que compro para ler depois (ainda que esse depois nunca chegue), e a capa consistia num fu...

Pedrete

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Lá estávamos no coletivo, tradicionalmente acomodados nas últimas poltronas, trocando ideias, desfrutando da melhor hora da labuta, que é a de ir pra casa, e dentre outras amenidades proferidas para encher linguiça, meu colega desabafa: _Pô, cara, o Pedrete é foda! _Conheço esse cara não... _Como não conhece, meu? O Pedrete! - protestou o interlocutor quase indignado. _Amigo, não conheço esse tal Pedrete, mas se você desembuchar logo o que ele fez, vai me ajudar a entender. - ponderei. _O Pedrete é folgado. Ontem eu estava pilotando minha moto e ele entrou na minha frente. Quase me derrubou e ainda por cima ficou nervosinho e saiu xingando. É que eu sou de boa, senão ele ia ver só. _Entendi. Apenas não consigo aceitar que naquela cidadezinha minúscula onde moramos, eu não conheça esse indivíduo... _ O pedrete, pô! Pesdrete, pestrede, pestedre... _PEDESTRE, você quis dizer? _É isso que estou dizendo desde o começo. Você parece um burro. Meu amigo inclinou o assento ao máximo, virou para...

A goiabeira

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  Era uma manhã de outono típica no campo de obras. Havia chovido no dia anterior e as máquinas de terraplanagem disputavam espaço com pedras, buracos e desníveis entre o restante da vegetação desmatada, conduzidas furiosamente na lama por operadores motivados pela promessa de um dia de horas-extras e pelo efeito ainda pungente do café da manhã consumido momentos antes, com o firmamento como teto e os tambores de combustível como mesas. Enquanto eu recolhia os despojos do desjejum e me dirigia ao carro da empreiteira para voltar ao escritório, um súbito burburinho, que rapidamente se transformou em discussão paralisou os trabalhos, e os ânimos exaltados entre operadores e o encarregado da obra representavam mais que um convite a me envolver na confusão, mas uma convocação de fato. Chafurdando na lama com minhas botas de bico de aço, rapidamente cheguei no cerne do tumulto, que consistia num operador amuado de um trator de esteira com sua máquina parada na frente de uma solitária go...

Cavalheirismo cafajeste

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  Lá estava eu novamente na mesma mesa, da mesma padaria, com a mesma ausência de companhia de sempre, para mais uma vez, desperdiçar uma manhã de outono tomando café, comendo pães de queijo e conjecturando sobre novas maneiras de me autossabotar. Só que desta vez, o casal na mesa à frente impunha um obstáculo ao meu intento: uma calorosa discussão entremeada por cochichos agressivos e maneirismos mútuos, que eram disfarçados por falsas gentilezas quando flagrados por olhares errantes. Enquanto os querelantes se esmeravam em convencer o outro sobre algum tipo de razão afrontada que necessitava reconhecimento, desisti da minha postura autocêntrica e me permiti o pecadilho da curiosidade, apurando os ouvidos e prestando atenção ao que o casal cochichava. O assunto era uma desconfiança dela quanto a algum tipo de trabalho informal que o cara realizava e que segundo sua versão, era pretexto para encontros fortuitos com amantes. Ela vociferava entre cochichos: _ Trabalho o dia inteiro, ...

Noctívago

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Nas sombrias veredas da noite Ecoam sussuros de pretérita dor E o pavor enregela meu sangue Quando soa o azucrim do infesto No arvoredo busco refúgio  Entre caules, nas sebes intrincadas Que bruxuleam enquanto escafedo Como que saudando meu infortúnio  Olhos no escuro me fitam Fazendo o coração disparar Com os gritos de horror que ecoam E o perfume da morte no ar No véu rasgado da escuridão O nefasto se fez presente Não há refúgio nem salvação Apenas o fado que mereci Prostrado, suspiro e me rendo Tornando o medo em placidez Pois este mundo atro e insano Minha morada haverá de ser.

Indiferença

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Odiar é dar tanta relevância quanto amar, mas esquecer alguém, prezados... É caminhar sobre um cadáver, com um sorriso indiferente no rosto.

Sobre amor e potes de mostarda

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"Você deixou o pote de mostarda de ponta-cabeça", disse ele. _ Não, querido. O pote foi concebido dessa forma para que a gravidade mantenha o conteúdo sempre junto ao bico, para evitar desperdício e facilitar que a mostarda saia do pote sem aqueles estourinhos que respingam em nossas roupas. Desenhei? _ Querida, tenho TOC. Olhar para esse pote em cima da mesa como se estivesse de cabeça para baixo está me dando gastura. _Amore mio, tente enxergar esse pote como se fosse um recipiente de mostarda, não uma obra de arte fora de contexto. Menos, né? _Benzinho, então coloque este pote longe da minha visão e não se fala mais nisso. _Coração, como vou esconder de sua visão esse pote, em uma mesa para duas pessoas? Quer que eu coloque embaixo dela? - ela respondeu arfando, com um sorriso impaciente. _Não seja sarcástica comigo,  amor. Lembra o que aquele psiquiatra do filme de comédia que assistimos ontem disse para o paciente? "O sarcasmo é o primo feio da raiva". Relaxa! ...

Hirsuto fetiche

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Hirsuto fetiche Enquanto acariciava com esmero aqueles cabelos emaranhados, de fios multicores, de variadas texturas, primando que cada afago não deixasse dúvidas sobre a honestidade de seus sentimentos, lamentava quanto tempo de vida havia sido desperdiçado sem que a candura de seu afeto tivesse sido externada, fosse com gestos, palavras ou atitudes. Os dedos grossos e nodosos se revezavam com as costas das mãos rugosas na primazia de acarinhar aqueles fios, enquanto os olhos de pesadas pálpebras continuavam cerrados, deixando a inspiração do tato suplantar a visão, trazendo à sua mente a supremacia da idealização sobre a obviedade da percepção. Nas profundezas oníricas de seu córtex, todo um romance de agruras superadas com a intensidade de um amor real, posto que imaginado, era rememorado como um filme em que o roteiro era ficção, o enredo, não. Passos rápidos e ritmados vindos do corredor tornaram os devaneios em apreensão. Puxou com energia aquele tufo de cabelos da escova da patr...

Sobre um trevo renascido

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Em uma incursão ao meu quintal, perdi a tira de meia-calça que prendia minhas madeixas, mas em compensação, percebi que o trevo de quatro folhas que eu considerava morto, havia renascido.  Deve ser a natureza dizendo que enquanto houver vida, haverá esperança. Ou que quando não houver pedaços de meia-calça para prender os cabelos, haverá sempre um trevo de quatro folhas para te distrair do aborrecimento. Ou então deve ser a minha mania besta de impregnar significado em tudo que vejo, vai saber?

Heathcliff Ressurreto

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Rearranjando pela enésima vez minha biblioteca, um objeto caído de um exemplar de "O morro dos ventos uivantes" despertou-me a reflexão de que no final das contas, o que importa não é o que se vê, mas o que se percebe, insinua, desvela, instiga, provoca, desperta, reconhece, transcende, emana, inspira e sobrevive impávido, mesmo após após saciado. Explico: Quando você abre um livro e se depara com uma velha embalagem de bombom cuidadosamente trançada em laço, o que vai invadir suas memórias? O chocolate saboreado, mastigado e deglutido ou a vivência que impregnou de sentido aquele reles e subestimado pedaço de papel? Com a devida vênia a todos os chocolates que comi e a todas as almas bem (ou mal) intencionadas que os me presentearam, nenhum deles foi tão delicioso quanto aquele que outrora fora envolvido no invólucro rosa transparente, decorado com partituras e um casal bailando, esmaecido pelo solvente do tempo. Por um capricho do destino ou intencionalidade há muito esquec...

Hipocrisia

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Cobrarei tudo de ti e mesmo que tudo me deres, acharei-me no direito de te dar o oposto do que quero para mim. Todo(a) hipócrita é assim. Errei, mas a culpa de meu erro é sua, pois por mais que eu faça o que quero e tu também faças o que quero, o tudo que espero de ti e que não podes me dar será motivo para minha eterna insatisfação. Todo(a) hipócrita é assim. Se falhei, e meu erro é pior do que o seu, de nada interessa a proporcionalidade: Estarei isento do crivo de sua crítica (e de minha autocrítica), pois meu erro é humano e o seu, mero pretexto para que eu legitime o que faço de errado. Todo(a) hipócrita é assim. A dor que me causas por saber de minha inconsequência não será aliviada pelo sofrimento que te causo, mas fazê-lo sofrer me trará a satisfação de não estar sozinho ao tragar toda a possibilidade de felicidade para o desespero de meu vazio interior. Todo(a) hipócrita é assim. E você, como é?

Assaz fortuito

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Assaz fortuito  Era a primeira alvorada depois do inverno enregelante das plagas mantiqueireanas, mas o tímido sol era apenas um halo oculto pela grossa neblina característica da época, dando ares de madrugada à manhã que enfrentava o breu. Na falta de transeuntes a quem cumprimentar, ou conhecidos com quem compartilhar as sacais impressões sobre o clima, ou se inteirar sobre o último adultério do prefeito, ou quem sabe receber algum pedido de empréstimo dos fodidos que nos rodeiam, desta vez era somente o ar gélido que o acompanhava, com tal cumplicidade que o vento soprava no rumo de seu destino, onde certamente essa quase solidão daria vez a madrugadores defendendo seus lugares na concorrida fila do pão. Uma recorrente tontura o incomodava e desta vez um pouco mais que o normal, pois sob aquele espesso nevoeiro, divisar caminho entre pedras, buracos e ressaltos no meio-fio começava a dar ares de aventura àquele corriqueiro deslocamento. O pior veio a acontecer. O desequilíbrio, ...

Mente e coração (e) comprimidos

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Mais um dia perambulando pelas ruas imaginárias das emoções anestesiadas e enquanto divago, tropeço num tarugo de entusiasmo que não deveria estar ali. Mas que raios estaria aquele impulso anímico fazendo na segurança do meu torpor? Seria reação à ausência das vivências que outrora preenchiam meus olhos com belezas, para depois furar minhas córneas com a estéril certeza das lacunas que se sucederiam em verdadeiros saaras de arenosas nulidades? Ou a necessidade de se mostrar à miríade de individualidades que residem no atro infinito, tal como imã que pinçasse dos amplos espaços vazios as filigranas de essencialidades esparsas que estivessem eternamente à espera de serem notadas, para então, reconhecerem-se em si? Quem sabe tivesse sido um par de borboletas tingidas em psicodélicos gradientes, que em singela e improvável manobra, tapassem meus ouvidos e impedissem que eu ouvisse mais uma vez que a mediocridade é a norma e que não sentir nada é mais seguro que ter as sinapses explodidas p...

Sinfonia átona

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Sinfonia átona Enquanto caminhava, ocioso a tentar me libertar do jugo da racionalidade, vi-me absorto em sentimentos, muito mais que em pensamentos. Sentia o sol fustigante a dourar-me o dorso; sons de aves e insetos pondo meus tímpanos a vibrar, o vento, qual um suspiro etéreo a acariciar minha tez; o suor a singrar minha face em micro rios que a um incauto que observasse, poderia se confundir com lágrimas; os pés descalços a oprimir a relva, roçando ervas daninhas à medida em que as foices de meus dedos se moviam adiante.  O silêncio que não havia na natureza era abundante em meu íntimo e nessa sinfonia átona, mais imponente que o maciço pétreo a obstruir o horizonte, urgia a compreensão do que me movia na direção de um qualquer lugar chamado "encontrar-me". Com o mar sereno interior a toldar a percepção da confusa cacofonia do arrabalde distante, o toque de suaves dedos em meu ombro despertou-me com a sutileza de uma hecatombe. Era você.  Encontrei-me enfim.

Quarenta e cinco segundos

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O sol escaldante calcinava meu antebraço esquerdo, enquanto eu freava diante do semáforo em vermelho. E essa cor primária parecia onipresente no meu estado de espírito belicoso, na lataria do meu carro, na brasa do cigarro, na pele do antebraço, na minha conta bancária, na minha gravata, na placa de parada obrigatória, nos meus olhos marejados, no sangue salpicado no asfalto pela carcaça de um cachorro atropelado... Há tempos, levantar era um martírio, trabalhar era um fardo, relacionar-se socialmente era um convite à discórdia e o percurso entre meus afazeres, inoportunos momentos para infindáveis diálogos internos, nos quais peremptoriamente eu era vítima de mim por ser o algoz dos outros. Imerso na contemplação de minhas desventuras, nem percebi quando um maltrapilho aproximou-se da janela e me propôs, quase impondo, um óbolo: "Boa tarde, patrão! Dá um trocado para eu tomar uma pinga?" O turbilhão de meus pensamentos haviam me deixado aéreo. Assim como um mendigo, bem pode...